terça-feira, 30 de setembro de 2008

Casada e viúva, 1864

Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Publicado originalmente em Jornal das Famílias, novembro de 1864.





ÍNDICE


CAPÍTULO PRIMEIRO

CAPÍTULO II

CAPÍTULO III










CAPÍTULO PRIMEIRO

No dia em que José de Meneses recebeu por mulher Eulália Martins, diante do altar-mor da matriz do Sacramento, na presença das respectivas famílias, aumentou-se com mais um a lista dos casais felizes.

Era impossível amar-se mais do que se amavam aqueles dois. Nem me atrevo a descrevê-lo. Imagine-se a fusão de quatro paixões amorosas das que a fábula e a história nos dão conta e ter-se-á a medida do amor de José de Meneses por Eulália e de Eulália por José de Meneses.

As mulheres tinham inveja à mulher feliz, e os homens riam dos sentimentos, um tanto piegas, do apaixonado marido. Mas os dois filósofos do amor relevaram à humanidade as suas fraquezas e resolveram protestar contra elas amando-se ainda mais.

Mal contava um mês de casado, sentiu José de Meneses, em seu egoísmo de noivo feliz, que devia fugir à companhia e ao rumor da cidade. Foi procurar uma chácara na Tijuca, e lá se encafuou com Eulália.

Ali viam correr os dias no mais perfeito descuido, respirando as auras puras da montanha, sem inveja dos maiores potentados da terra.

Um ou outro escolhido conseguiu às vezes penetrar no santuário em que os dois viviam, e de cada vez que de lá saía vinha com a convicção mais profunda de que a felicidade não podia estar em outra parte senão no amor.

Acontecia, pois, que, se as mulheres invejavam Eulália e se os homens riam de José de Meneses, as mães, as mães previdentes, a espécie santa, no dizer de E. Augier, nem riam nem se deixavam dominar pelo sexto pecado mortal: pediam simplesmente a Deus que lhes deparasse às filhas um marido da estofa e da capacidade de José de Meneses.

Mas cumpre dizer, para inspirar amor a maridos tais como José de Meneses, era preciso mulheres tais como Eulália Martins. Eulália em alma e corpo era o que há de mais puro unido ao que há de mais belo. Tanto era um milagre de beleza carnal, como era um prodígio de doçura, de elevação e de sinceridade de sentimentos. E, sejamos francos, tanta coisa junta não se encontra a cada passo.

Nenhuma nuvem sombreava o céu azul da existência do casal Meneses. Minto, de vez em quando, uma vez por semana apenas, e isto só depois de cinco meses de casados, Eulália derramava algumas lágrimas de impaciência por se demorar mais do que costumava o amante José de Meneses. Mas não passava isso de uma chuva de primavera, que, mal assomava o sol à porta, cessava para deixar aparecer as flores do sorriso e a verdura do amor. A explicação do marido já vinha sobreposse; mas ele não deixava de dá-la apesar dos protestos de Eulália; era sempre excesso de trabalho que pedia a presença dele na cidade até uma parte da noite.

Ano e meio viveram assim os dois, ignorados do resto do mundo, ébrios da felicidade e da solidão.

A família tinha aumentado com uma filha no fim de dez meses. Todos que são pais sabem o que é esta felicidade suprema. Aqueles quase enlouqueceram. A criança era um mimo de graça angélica. Meneses via nela o riso de Eulália, Eulália achava que os olhos eram os de Meneses. E neste combate de galanteios passavam as horas e os dias.

Ora, uma noite, como o luar estivesse claro e a noite fresquíssima, os dois, marido e mulher, deixaram a casa, onde a pequena ficara adormecida, e foram conversar junto ao portão, sentados em cadeiras de ferro e debaixo de uma viçosa latada, sub tegmine fagi.

Meia hora havia que ali estavam, lembrando o passado, saboreando o presente e construindo o futuro, quando parou um carro na estrada.

Voltaram os olhos e viram descer duas pessoas, um homem e uma mulher.

— Há de ser aqui, disse o homem olhando para a chácara de Meneses.

Neste momento o luar deu em cheio no rosto da mulher. Eulália exclamou:

— É Cristiana!

E correu para a recém-chegada.

Os dois novos personagens eram o Capitão Nogueira e Cristina Nogueira, mulher do capitão.

O encontro foi o mais cordial do mundo. Nogueira era já amigo de José de Meneses, cujo pai fora colega dele na escola militar, andando ambos a estudar engenharia. Isto quer dizer que Nogueira era já homem dos seus quarenta e seis anos.

Cristiana era uma moça de vinte e cinco anos, robusta, corada, uma dessas belezas da terra, muito apreciáveis, mesmo para quem goza uma das belezas do céu, como acontecia a José de Meneses.

Vinham de Minas, onde se haviam casado.

Nogueira, cinco meses antes, saíra para aquela província a serviço do Estado e ali encontrou Cristiana, por quem se apaixonou e a quem soube inspirar uma estima respeitosa. Se eu dissesse amor, mentia, e eu tenho por timbre contar as coisas como as coisas são.

Cristiana, órfã de pai e mãe, vivia na companhia de um tio, homem velho e impertinente, achacado de duas moléstias gravíssimas: um reumatismo crônico e uma saudade do regímen colonial. Devo explicar esta última enfermidade; ele não sentia que o Brasil se tivesse feito independente; sentia que, fazendo-se independente, não tivesse conservado a forma de governo absoluto. Gorou o ovo, dizia ele, logo depois de adotada a constituição. E protestando interiormente contra o que se fizera, retirou-se para Minas Gerais, donde nunca mais saiu. A esta ligeira notícia do tio de Cristiana acrescentarei que era rico como um Potosi e avarento como Harpagão.

Entrando na fazenda do tio de Cristiana e sentindo-se influído pela beleza desta, Nogueira aproveitou-se da doença política do fazendeiro para lisonjeá-la com umas fomentações de louvor do passado e indignação pelo presente. Em um servidor do Estado atual das coisas, achou o fazendeiro que era aquilo uma prova de rara independência, e o estratagema do capitão surtiu duas vantagens: o fazendeiro deu-lhe a sobrinha e mais um bom par de contos de réis. Nogueira, que só visava a primeira, achou-se felicíssimo por ter alcançado ambas. Ora, é certo que, sem as opiniões forjadas no momento pelo capitão, o velho fazendeiro não tiraria à sua fortuna um ceitil que fosse.

Quanto a Cristiana, se não sentia pelo capitão um amor igual ou mesmo inferior ao que lhe inspirava, votava-lhe uma estima respeitosa. E o hábito, desde Aristóteles todos reconhecem isto, e o hábito, aumentando a estima de Cristiana, dava à vida doméstica do Capitão Nogueira uma paz, uma tranqüilidade, um gozo brando, digno de tanta inveja como era o amor sempre violento do casal Meneses.

Voltando à corte, Cristiana esperava uma vida mais própria aos seus anos de moça do que a passada na fazenda mineira na companhia fastidiosa do reumático legitimista. Pouco que pudessem alcançar as suas ilusões, era já muito em comparação com o passado.

Dadas todas estas explicações, continuo a minha história.



CAPÍTULO II

Deixo ao espírito do leitor ajuizar como seria o encontro de amigos que se não vêem há muito.

Cristiana e Eulália tinham muito que contar uma à outra, e, em sala à parte, ao pé do berço em que dormia a filha de José de Meneses, deram largas à memória, ao espírito e ao coração. Quanto a Nogueira e José de Meneses, depois de narrada a história do respectivo casamento e suas esperanças de esposos, entraram, um na exposição das suas impressões de viagem, o outro na das impressões que deveria ter em uma viagem que projetava.

Passaram-se deste modo as horas até que o chá reuniu a todos quatro à roda da mesa de família. Esquecia-me dizer que Nogueira e Cristiana declararam desde o princípio que, tendo chegado pouco havia, tencionavam demorar-se uns dias em casa de Meneses até que pudessem arranjar na cidade ou nos arrabaldes uma casa conveniente.

Meneses e Eulália ouviram isto, pode-se dizer que de coração alegre. Foi decretada a instalação dos dois viajantes. Tarde se levantaram da mesa, onde o prazer de se verem juntos os prendia insensivelmente. Guardaram o muito que ainda havia a dizer para os outros dias e recolheram-se.

— Conhecia José de Meneses? perguntou Nogueira a Cristiana ao retirar-se para os seus aposentos.

— Conhecia de casa de meu pai. Ele ia lá há oito anos.

— É uma bela alma!

— E Eulália!

— Ambos! ambos! É um casal feliz!

— Como nós, acrescentou Cristiana abraçando o marido.

No dia seguinte, foram os dois maridos para a cidade, e ficaram as duas mulheres entregues aos seus corações.

De volta, disse Nogueira ter encontrado casa; mas era preciso arranjá-la, e foi marcado para os arranjos o prazo de oito dias.

Os seis primeiros dias deste prazo correram na maior alegria, na mais perfeita intimidade. Chegou-se a aventar a idéia de ficarem os quatro habitando juntos. Foi Meneses o autor da idéia. Mas Nogueira alegou ter necessidade de casa própria e especial, visto como esperava alguns parentes do Norte.

Enfim, no sétimo dia, isto é, na véspera de se separarem os dois casais, estava Cristiana passeando no jardim, à tardinha, em companhia de José de Meneses, que lhe dava o braço. Depois de trocarem muitas palavras sobre coisas totalmente indiferentes à nossa história, José de Meneses fixou o olhar na sua interlocutora e aventurou estas palavras:

— Não tem saudade do passado, Cristiana?

A moça estremeceu, abaixou os olhos e não respondeu.

José de Meneses insistiu. A resposta de Cristiana foi:

— Não sei; deixe-me!

E forcejou por tirar o braço do de José de Meneses; mas este reteve-a.

— Que susto pueril! Onde quer ir? Meto-lhe medo?

Nisto parou ao portão um moleque com duas cartas para José de Meneses. Os dois passavam neste momento em frente do portão. O moleque fez entrega das cartas e retirou-se sem exigir resposta.

Meneses fez os seguintes raciocínios: — Lê-las imediatamente era dar lugar a que Cristiana se evadisse para o interior da casa; não sendo as cartas de grande urgência, visto que o portador não exigira resposta, não havia grande necessidade de lê-las imediatamente. Portanto guardou as cartas cuidadosamente para lê-las depois.

E de tudo isto conclui o leitor que Meneses tinha mais necessidade de falar a Cristiana do que curiosidade de ler as cartas.

Acrescentarei, para não dar azo aos esmerilhadores de inverossimilhanças, que Meneses conhecia muito bem o portador e sabia ou presumia saber de que tratavam as cartas em questão.

Guardadas as cartas, e sem tirar o braço a Cristiana, Meneses continuou o passeio e a conversação.

Cristiana estava confusa e trêmula. Durante alguns passos não trocaram uma palavra.

Finalmente, Meneses rompeu o silêncio perguntando a Cristiana:

— Então, que me responde?

— Nada, murmurou a moça.

— Nada! exclamou Meneses. Nada! era então esse o amor que me tinha?

Cristiana levantou os olhos espantados para Meneses. Depois, procurando de novo tirar o braço do de Meneses, murmurou:

— Perdão, devo recolher-me.

Meneses reteve-a de novo.

— Ouça-me primeiro, disse. Não lhe quero fazer mal algum. Se me não ama, pode dizê-lo, não me zangarei; receberei essa confissão como o castigo do passo que dei, casando minha alma que se não achava solteira.

— Que estranha linguagem é essa? disse a moça. A que vem essa recordação de uma curta fase da nossa vida, de um puro brinco da adolescência?

— Fala de coração?

— Pois, como seria?

— Ah! não me faça crer que um perjúrio...

— Perjúrio!...

A moça sorriu-se com desdém. Depois continuou:

— Perjúrio é isto que faz. Perjúrio é trazer enganada a mais casta e a mais digna das mulheres, a mais digna, ouve? Mais digna do que eu, que ainda o ouço e lhe respondo.

E dizendo isto Cristiana tentou fugir.

— Onde vai? perguntou Meneses. Não vê que está agitada? Poderia fazer nascer suspeitas. Demais, pouco tenho a dizer-lhe. É uma despedida. Nada mais, em nenhuma ocasião, ouvirá de minha boca. Supunha que através dos tempos e das adversidades tivesse conservado pura e inteira a lembrança de um passado que nos fez felizes. Vejo que me enganei. Nenhum dos caracteres superiores que eu enxergava em seu coração tinha existência real. Eram simples criações do meu espírito demasiado crédulo. Hoje que se desfaz o encanto, e que eu posso ver toda a enormidade da fraqueza humana, deixe-me dizer-lhe, perdeu um coração e uma existência que não merecia. Saio-me com honra de um combate em que não havia igualdade de forças. Saio puro. E se no meio do desgosto em que me fica a alma, é-me lícito trazê-la à lembrança, será como um sonho esvaecido, sem objeto real na terra.

Estas palavras foram ditas em um tom sentimental e como que estudado para a ocasião.

Cristiana estava aturdida. Lembrava-se que em vida de seu pai, tinha ela quinze anos, houvera entre ela e José de Meneses um desses namoros de criança, sem conseqüência, em que o coração empenha-se menos que a fantasia.

Com que direito vinha hoje Meneses reivindicar um passado cuja lembrança, se alguma havia, era indiferente e sem alcance?

Estas reflexões pesaram no espírito de Cristiana. A moça expô-las em algumas palavras cortadas pela agitação em que se achava, e pelas interrupções dramáticas de Meneses.

Depois, como aparecesse Eulália à porta da casa, a conversa foi interrompida.

A presença de Eulália foi um alívio para o espírito de Cristiana. Mal a viu, correu para ela, e convidou-a a passear pelo jardim, antes que anoitecesse.

Se Eulália pudesse nunca suspeitar da fidelidade de seu marido, veria na agitação de Cristiana um motivo para indagações e atribulações. Mas a alma da moça era límpida e confiante, dessa confiança e limpidez que só dá o verdadeiro amor.

Deram as duas o braço, e dirigiram-se para uma alameda de casuarinas, situada na parte oposta àquela em que ficara passeando José de Meneses.

Este, perfeitamente senhor de si, continuou a passear como que entregue a suas reflexões. Seus passos, em aparência vagos e distraídos, procuravam a direção da alameda em que andavam as duas.

Depois de poucos minutos encontraram-se como que por acaso.

Meneses, que ia de cabeça baixa, simulou um ligeiro espanto e parou.

As duas pararam igualmente.

Cristiana tinha a cara voltada para o lado. Eulália, com um divino sorriso, perguntou:

— Em que pensas, meu amor?

— Em nada.

— Não é possível, retorquiu Eulália.

— Penso em tudo.

— O que é tudo?

— Tudo? É o teu amor.

— Deveras?

E voltando-se para Cristiana, Eulália acrescentou:

— Olha, Cristiana, já viste um marido assim? É o rei dos maridos. Traz sempre na boca uma palavra amável para sua mulher. É assim que deve ser. Não esqueça nunca estes bons costumes, ouviu?

Estas palavras alegres e descuidosas foram ouvidas distraidamente por Cristiana. Meneses tinha os olhos cravados na pobre moça.

— Eulália, disse ele, parece que D. Cristiana está triste.

Cristiana estremeceu.

Eulália voltou-se para a amiga e disse:

— Triste! Já assim me pareceu. É verdade, Cristiana? Estarás triste?

— Que idéia! Triste por quê?

— Ora, pela conversa que há pouco tivemos, respondeu Meneses.

Cristiana fitou os olhos em Meneses. Não podia compreendê-lo e não adivinhava onde queria ir o marido de Eulália.

Meneses, com o maior sangue frio, acudiu à interrogação muda que as duas pareciam fazer.

— Eu contei a D. Cristiana o assunto da única novela que li em minha vida. Era um livro interessantíssimo. O assunto é simples, mas comovente. É uma série de torturas morais por que passa uma moça a quem esqueceu juramentos feitos na mocidade. Na vida real este fato é uma coisa mais que comum; mas tratado pelo romancista toma um tal caráter que chega a assustar o espírito mais refratário às impressões. A análise das atribulações da ingrata é feita por mão de mestre. O fim do romance é mais fraco. Há uma situação forçada... uma carta que aparece... Umas coisas... enfim, o melhor é o estudo profundo e demorado da alma da formosa perjura. D. Cristiana é muito impressível...

— Oh! meu Deus! exclamou Eulália. Só por isto?

Cristiana estava ofegante. Eulália, assustada por vê-la em tal estado, convidou-a a recolher-se. Meneses apressou-se a dar-lhe o braço e dirigiram-se os três para casa. Eulália entrou antes dos dois. Antes de pôr pé no primeiro degrau da escada de pedra que dava acesso à casa, Cristiana disse a Meneses, em voz baixa e concentrada:

— É um bárbaro!

Entraram todos. Era já noite. Cristiana reparou que a situação era falsa e tratou de desfazer os cuidados, ou porventura as más impressões que tivessem ficado a Eulália depois do desconchavo de Meneses. Foi a ela, com o sorriso nos lábios:

— Pois, deveras, disse ela, acreditaste que eu ficasse magoada com a história? Foi uma impressão que passou.

Eulália não respondeu.

Este silêncio não agradou nem a Cristiana, nem a Meneses. Meneses contava com a boa fé de Eulália, única explicação de ter adiantado aquela história tão fora de propósito. Mas o silêncio de Eulália teria a significação que lhe deram os dois? Parecia ter, mas não tinha. Eulália achou estranha a história e a comoção de Cristiana; mas, entre todas as explicações que lhe ocorressem, a infidelidade de Meneses seria a última, e ela nem passou da primeira. Sancta simplicitas!

A conversa continuou fria e indiferente até a chegada de Nogueira. Seriam então nove horas. Serviu-se o chá, depois do que, todos se recolheram. Na manhã seguinte, como disse acima, deviam partir Nogueira e Cristiana.

A despedida foi como é sempre a despedida de pessoas que se estimam. Cristiana fez os esforços maiores para que no espírito de Eulália não surgisse o menor desgosto; e Eulália, que não usava mal, mal não cuidou na história da noite anterior. Despediram-se todos com promessa jurada de se visitarem a miúdo.



CAPÍTULO III

Passaram-se quinze dias depois das cenas que narrei acima. Durante esse tempo nenhum dos personagens que nos ocupam tiveram ocasião de se falarem. Não obstante pensavam muito uns nos outros, por saudade sincera, por temor do futuro e por frio cálculo de egoísmo, cada qual pensando segundo os seus sentimentos.

Cristiana refletia profundamente sobre a sua situação. A cena do jardim era para ela um prenúncio de infelicidade, cujo alcance não podia avaliar, mas que lhe pareciam inevitáveis. Entretanto, que tinha ela no passado? Um simples amor de criança, desses amores passageiros e sem conseqüências. Nada dava direito a Meneses para reivindicar juramentos firmados por corações extremamente juvenis, sem consciência da gravidade das coisas. E demais, o casamento de ambos não invalidara esse passado invocado agora?

Refletindo deste modo, Cristiana era levada às últimas conseqüências. Ela estabelecia em seu espírito o seguinte dilema: ou a reivindicação do passado feita por Meneses era sincera ou não. No primeiro caso era a paixão concentrada que fazia irrupção no fim de tanto tempo, e Deus sabe onde poderiam ir os seus efeitos. No segundo caso, era simples cálculo de abjeta lascívia; mas então, se mudara a natureza dos sentimentos do marido de Eulália, não mudava a situação nem desapareciam as apreensões do futuro. Era preciso ter a alma profundamente mirrada para iludir daquele modo uma mulher virtuosa tentando contra a virtude de outra mulher.

Em honra de Cristiana devo acrescentar que os seus temores eram menos por ela que por Eulália. Estando segura de si, o que ela temia era que a felicidade de Eulália se anuviasse, e a pobre moça viesse a perder aquela paz do coração que a fazia invejada de todos.

Apreciando estes fatos à luz da razão prática, se julgarmos legítimos os temores de Cristiana, julgaremos exagerada as proporções que ela dava ao ato de Meneses. O ato de Meneses reduz-se, afinal de contas, a um ato comum, praticado todos os dias, no meio da tolerância geral e até do aplauso de muitos. Certamente que isso não lhe dá virtude, mas tira-lhe o mérito da originalidade.

No meio das preocupações de Cristiana tomara lugar a carta a que Meneses aludira. Que carta seria essa? Alguma dessas confidências que o coração da adolescência facilmente traduz no papel. Mas os termos dela? Em qualquer dos casos do dilema apresentado acima Meneses podia usar da carta, a que talvez faltasse a data e sobrassem expressões ambíguas para supô-la de feitura recente.

Nada disto escapava a Cristiana. E com tudo isto entristecia. Nogueira reparou na mudança que apresentava sua mulher e interrogou-a carinhosamente. Cristiana nada lhe quis confiar, porque uma leve esperança lhe fazia crer às vezes que a consciência de sua honra teria por prêmio a tranqüilidade e a felicidade. Mas o marido, não alcançando nada e vendo-a continuar na mesma tristeza, entristecia-se também e desesperava. Que podia desejar Cristiana? pensava ele. Na incerteza e na angústia da situação lembrou-se de ter com Eulália para que esta ou o informasse, ou, como mulher, alcançasse de Cristiana o segredo das suas concentradas mágoas. Eulália marcou o dia em que iria à casa de Nogueira, e este saiu da chácara da Tijuca animado por algumas esperanças.

Ora, nesse dia apresentou-se pela primeira vez em casa de Cristiana o exemplar José de Meneses. Apareceu como a estátua do comendador. A pobre moça, ao vê-lo, ficou aterrada. Estava só. Não sabia que dizer quando à porta da sala assomou a figura mansa e pacífica de Meneses. Nem se levantou. Olhou-o fixamente e esperou.

Meneses parou à porta e disse com um sorriso nos lábios:

— Dá licença?

Depois, sem esperar resposta, dirigiu-se para Cristiana; estendeu- lhe a mão e recebeu a dela fria e trêmula. Puxou cadeira e sentou-se ao pé dela familiarmente.

— Nogueira saiu? perguntou depois de alguns instantes, descalçando as luvas.

— Saiu, murmurou a moça.

— Tanto melhor. Tenho então tempo para dizer-lhe duas palavras.

A moça fez um esforço e disse:

— Também eu tenho para dizer-lhe duas palavras.

— Ah! sim. Ora bem, cabe às damas a precedência. Sou todo ouvidos.

— Possui alguma carta minha?

— Possuo uma.

— É um triste documento, porque, respondendo a sentimentos de outro tempo, se eram sentimentos dignos deste nome, de nada pode valer hoje. Todavia, desejo possuir esse escrito.

— Vejo que não tem hábito de argumentar. Se a carta em questão não vale nada, por que deseja possuí-la?

— É um capricho.

— Capricho, se existe algum é o de tratar por cima do ombro um amor sincero e ardente.

— Falemos de outra coisa.

— Não; falemos disto, que é essencial.

Cristiana levantou-se.

— Não posso ouvi-lo, disse ela.

Meneses segurou-lhe em uma das mãos e procurou retê-la. Houve uma pequena luta. Cristiana ia tocar a campainha que se achava sobre uma mesa, quando Meneses deixou-lhe a mão e levantou-se.

— Basta, disse ele; escusa de chamar seus fâmulos. Talvez que ache grande prazer em pô-los na confidência de um amor que não merece. Mas eu é que me não exponho ao ridículo depois de me expor à baixeza. É baixeza, sim; não devia mendigar para o coração o amor de quem não sabe compreender os grandes sentimentos. Paciência; fique com a sua traição; eu ficarei com o meu amor; mas procurarei esquecer o objeto dele para lembrar-me da minha dignidade.

Depois desta tirada dita em tom sentimental e lacrimoso, Meneses encostou-se a uma cadeira como para não cair. Houve um silêncio entre os dois. Cristiana falou em primeiro lugar.

— Não tenho direito, nem dever, nem vontade de averiguar a extensão e a sinceridade desse amor; mas deixe que eu lhe observe; o seu casamento e a felicidade que parece gozar nele protestam contra as alegações de hoje.

Meneses levantou a cabeça, e disse:

— Oh! não me exprobre o meu casamento! Que queria que eu fizesse quando uma pobre moça me caiu nos braços declarando amar-me com delírio? Apoderou-se de mim um sentimento de compaixão; foi todo o meu crime. Mas neste casamento não empenhei tudo; dei a Eulália o meu nome e minha proteção; não lhe dei nem o meu coração nem o meu amor.

— Mas essa carta?

— A carta será para mim uma lembrança, nada mais; uma espécie de espectro do amor que existiu, e que me consolará no meio das minhas angústias.

— Preciso da carta!

— Não!

Neste momento entrou precipitadamente na sala a mulher de Meneses. Vinha pálida e trêmula. Ao entrar trazia na mão duas cartas abertas. Não pôde deixar de dar um grito ao ver a atitude meio suplicante de Cristiana e o olhar terno de Meneses. Deu um grito e caiu sobre o sofá. Cristiana correu para ela.

Meneses, lívido como a morte, mas cheio de uma tranqüilidade aparente, deu dois passos e apanhou as cartas que caíram da mão de Eulália. Leu-as rapidamente. Descompuseram-se-lhe as feições. Deixou Cristiana prestar os seus cuidados de mulher a Eulália e foi para a janela. Aí fez em tiras miúdas as duas cartas, e esperou, encostado à grade, que passasse a crise de sua mulher.

Eis aqui o que se passara.

Os leitores sabem que era aquele dia destinado à visita de Eulália a Cristina, visita de que só Nogueira tinha conhecimento.

Eulália deixou que Meneses viesse para a cidade e mandou aprontar um carro para ir à casa de Cristiana. Entretanto, assaltou-lhe uma idéia. Se seu marido voltasse para casa antes dela? Não queria causar-lhe impaciências ou cuidados, e arrependia-se de nada lhe ter dito com antecipação. Mas era forçoso partir. Enquanto se vestia ocorreu-lhe um meio. Deixar escritas duas linhas a Meneses dando-lhe parte de que saíra, e dizendo-lhe para que fim. Redigiu a cartinha mentalmente e dirigiu-se para o gabinete de Meneses.

Sobre a mesa em que Meneses costumava trabalhar não havia papel. Devia haver na gaveta, mas a chave estava seguramente com ele. Ia saindo para ir ver papel a outra parte, quando viu junto da porta uma chave; era a da gaveta. Sem escrúpulo algum, travou da chave, abriu a gaveta e tirou um caderno de papel. Escreveu algumas linhas em uma folha, e deixou a folha sobre a mesa debaixo de um pequeno globo de bronze. Guardou o resto do papel, e ia fechar a gaveta, quando reparou em duas cartinhas que, entre outras muitas, se distinguiam por um sobrescrito de letra trêmula e irregular, de caráter puramente feminino.

Olhou para a porta a ver se alguém espreitava a sua curiosidade e abriu as cartinhas, que, aliás, já se achavam descoladas. A primeira carta dizia assim:

Meu caro Meneses. Está tudo acabado. Lúcia contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — MARGARIDA.

A segunda carta era concebida nestes termos:

Meu caro Meneses. Está tudo acabado. Margarida contou-me tudo. Adeus; esquece-te de mim. — LÚCIA.

Como o leitor adivinha, estas cartas eram as duas que Meneses recebera na tarde em que andou passeando com Cristiana no jardim.

Eulália, lendo estas duas cartas, quase teve uma síncope. Pôde conter-se, e, aproveitando o carro que a esperava, foi buscar a Cristiana as consolações da amizade e os conselhos da prudência.

Entrando em casa de Cristiana pôde ouvir as últimas palavras do diálogo entre esta e Meneses. Esta nova traição de seu marido quebrara-lhe a alma.

O resto desta simples história conta-se em duas palavras.

Cristiana conseguira acalmar o espírito de Eulália e inspirar-lhe sentimentos de perdão. Entretanto, contou-lhe tudo o que ocorrera entre ela e Meneses, no presente e no passado.

Eulália mostrou ao princípio grandes desejos de separar-se de seu marido e ir viver com Cristiana; mas os conselhos desta, que, entre as razões de decoro que apresentou para que Eulália não tornasse pública a história das suas desgraças domésticas, alegou a existência de uma filha do casal, que cumpria educar e proteger, esses conselhos desviaram o espírito de Eulália dos seus primeiros projetos e fizeram-na resignada ao suplício.

Nogueira quase nada soube das ocorrências que acabo de narrar; mas soube quanto era suficiente para esfriar a amizade que sentia por Meneses.

Quanto a este, enfiado ao princípio com o desenlace das coisas, tomou de novo o ar descuidoso e aparentemente singelo com que tratava tudo. Depois de uma mal alinhavada explicação dada à mulher a respeito dos fatos que tão evidentemente o acusavam, começou de novo a tratá-la com as mesmas carícias e cuidados do tempo em que merecia a confiança de Eulália.

Nunca mais voltou ao casal Meneses a alegria franca e a plena satisfação dos primeiros dias. Os afagos de Meneses encontravam sua mulher fria e indiferente, e se alguma coisa mudava era o desprezo íntimo e crescente que Eulália votava a seu marido.

A pobre mãe, viúva da pior viuvez desta vida, que é aquela que anula o casamento conservando o cônjuge, só vivia para sua filha.

Dizer como acabaram ou como vão acabando as coisas não entra no plano deste escrito: o desenlace ainda é mais vulgar que o corpo da ação.

Quanto ao que há de vulgar em tudo o que acabo de contar, sou eu o primeiro a reconhecê-lo. Mas que querem? Eu não pretendo senão esboçar quadros ou caracteres, conforme me ocorrem ou vou encontrando. É isto e nada mais.

Virginius, 1864

Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, vol. II,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

Publicado originalmente em Jornal das Famílias, julho a agosto de 1864.











CAPÍTULO PRIMEIRO

(NARRATIVA DE UM ADVOGADO)

Não me correu tranqüilo o S. João de 185...

Duas semanas antes do dia em que a Igreja celebra o evangelista, recebi pelo correio o seguinte bilhete, sem assinatura e de letra desconhecida:

O Dr. *** é convidado a ir à vila de... tomar conta de um processo. O objeto é digno do talento e das habilitações do advogado. Despesas e honorários ser-lhe-ão satisfeitos antecipadamente, mal puser pé no estribo. O réu está na cadeia da mesma vila e chama-se Julião. Note que o Dr. é convidado a ir defender o réu.

Li e reli este bilhete; voltei-o em todos os sentidos; comparei a letra com todas as letras dos meus amigos e conhecidos... Nada pude descobrir.

Entretanto, picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance através daquele misterioso e anônimo bilhete. Tomei uma resolução definitiva. Ultimei uns negócios, dei de mão outros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à porta um cavalo e um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a sair, entrou-me em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me um rolo de papel contendo uma avultada soma, importância aproximada das despesas e dos honorários. Recusei apesar das instâncias, montei a cavalo e parti.

Só depois de ter feito algumas léguas é que me lembrei de que justamente na vila a que eu ia morava um amigo meu, antigo companheiro da academia, que se votara, oito anos antes, ao culto da deusa Ceres como se diz em linguagem poética.

Poucos dias depois apeava eu à porta do referido amigo. Depois de entregar o cavalo aos cuidados do camarada, entrei para abraçar o meu antigo companheiro de estudos, que me recebeu alvoroçado e admirado.

Depois da primeira expansão, apresentou-me ele à sua família, composta de mulher e uma filhinha, esta retrato daquela, e aquela retrato dos anjos.

Quanto ao fim da minha viagem, só lho expliquei depois que me levou para a sala mais quente da casa, onde foi ter comigo uma chávena de excelente café. O tempo estava frio; lembro que estávamos em junho. Envolvi-me no meu capote, e a cada gota de café que tomava fazia uma revelação.

— A que vens? a que vens? perguntava-me ele.

— Vais sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. Há quinze dias recebi no meu escritório, na corte, um bilhete anônimo em que se me convidava com instância a vir a esta vila para tomar conta de uma defesa. Não pude conhecer a letra; era desigual e trêmula, como escrita por mão cansada...

— Tens o bilhete contigo?

— Tenho.

Tirei do bolso o misterioso bilhete e entreguei-o aberto ao meu amigo. Ele, depois de lê-lo, disse:

— É a letra de Pai de todos.

— Quem é Pai de todos?

— É um fazendeiro destas paragens, o velho Pio. O povo dá-lhe o nome de Pai de todos, porque o velho Pio o é na verdade.

— Bem dizia eu que há romance no fundo!... Que faz esse velho para que lhe dêem semelhante título?

— Pouca coisa. Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fundidas em uma só pessoa. Só as grandes causas vão ter às autoridades judiciárias, policiais ou municipais; mas tudo o que não sai de certa ordem é decidido na fazenda de Pio, cuja sentença todos acatam e cumprem. Seja ela contra Pedro ou contra Paulo, Paulo e Pedro submetem-se, como se fora uma decisão divina. Quando dois contendores saem da fazenda de Pio, saem amigos. É caso de consciência aderir ao julgamento de Pai de todos.

— Isso é como juiz. O que é ele como homem caridoso?

— A fazenda de Pio é o asilo dos órfãos e dos pobres. Ali se encontra o que é necessário à vida: leite e instrução às crianças, pão e sossego aos adultos. Muitos lavradores nestas seis léguas cresceram e tiveram princípio de vida na fazenda de Pio. É a um tempo Salomão e S. Vicente de Paulo.

Engoli a última gota de café, e fitei no meu amigo olhos incrédulos.

— Isto é verdade? perguntei.

— Pois duvidas?

— É que me dói sair tantas léguas da Corte, onde esta história encontraria incrédulos, para vir achar neste recanto do mundo aquilo que devia ser comum em toda a parte.

— Põe de parte essas reflexões filosóficas. Pio não é um mito: é uma criatura de carne e osso; vive como vivemos; tem dois olhos, como tu e eu...

— Então esta carta é dele?

— A letra é.

— A fazenda fica perto?

O meu amigo levou-me à janela.

— Fica daqui a um quarto de légua, disse. Olha, é por detrás daquele morro.

Nisto passava por baixo da janela um preto montado em uma mula, sobre cujas ancas saltavam duas canastras. O meu amigo debruçou-se e perguntou ao negro:

— Teu senhor está em casa?

— Está, sim, Sr.; mas vai sair.

O negro foi caminho, e nós saímos da janela.

— É escravo de Pio?

— Escravo é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos. Olham-no todos como se fora um Deus. É que em parte alguma houve nunca mais brando e cordial tratamento a homens escravizados. Nenhum dos instrumentos de ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los existem na fazenda de Pio. Culpa capital ninguém comete entre os negros da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio aplica apenas uma repreensão tão cordial e tão amiga, que acaba por fazer chorar o delinqüente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre os seus escravos uma espécie de concurso que permite a um certo número libertar-se todos os anos. Acreditarás tu que lhes é indiferente viver livres ou escravos na fazenda, e que esse estímulo não decide nenhum deles, sendo que, por natural impulso, todos se portam dignos de elogios?

O meu amigo continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu espírito apreendia-se cada vez mais de que eu ia entrar em um romance. Finalmente o meu amigo dispunha-se a contar-me a história do crime em cujo conhecimento devia eu entrar daí a poucas horas. Detive-o.

— Não, disse-lhe, deixa-me saber de tudo por boca do próprio réu. Depois compararei com o que me contarás.

— É melhor. Julião é inocente...

— Inocente?

— Quase.

Minha curiosidade estava excitada ao último ponto. Os autos não me tinham tirado o gosto pelas novelas, e eu achava-me feliz por encontrar no meio da prosa judiciária, de que andava cercado, um assunto digno da pena de um escritor.

— Onde é a cadeia? perguntei.

— É perto, respondeu-me; mas agora é quase noite; melhor é que descanses; amanhã é tempo.

Atendi a este conselho. Entrou nova porção de café. Tomamo-lo entre recordações do passado, que muitas eram. Juntos vimos florescer as primeiras ilusões, e juntos vimos dissiparem-se as últimas. Havia de que encher, não uma, mas cem noites. Aquela passou-se rápida, e mais ainda depois que a família toda veio tomar parte em nossa íntima confabulação. Por uma exceção, de que fui causa, a hora de recolher foi a meia-noite.

— Como é doce ter um amigo! dizia eu pensando no Conde de Maistre, e retirando-me para o quarto que me foi destinado.



CAPÍTULO II

No dia seguinte, ainda vinha rompendo a manhã, já eu me achava de pé. Entrou no meu quarto um escravo com um grande copo de leite tirado minutos antes. Em poucos goles o devorei. Perguntei pelo amigo; disse-me o escravo que já se achava de pé. Mandei-o chamar.

— Será cedo para ir à cadeia? perguntei mal o vi assomar à porta do quarto.

— Muito cedo. Que pressa tamanha! É melhor aproveitarmos a manhã, que está fresca, e irmos dar um passeio. Passaremos pela fazenda de Pio.

Não me desagradou a proposta. Acabei de vestir-me e saímos ambos. Duas mulas nos esperavam à cancela, espertas e desejosas de trotar. Montamos e partimos.

Três horas depois, já quando o sol dissipara as nuvens de neblina que cobriam os morros como grandes lençóis, estávamos de volta, tendo eu visto a bela casa e as esplêndidas plantações da fazenda do velho Pio. Foi este o assunto do almoço.

Enfim, dado ao corpo o preciso descanso, e alcançada a necessária licença, dirigi-me à cadeia para falar ao réu Julião.

Sentado em uma sala onde a luz entrava escassamente, esperei que chegasse o misterioso delinqüente. Não se demorou muito. No fim de um quarto de hora estava diante de mim. Dois soldados ficaram à porta.

Mandei sentar o preso, e, antes de entrar em interrogatório, empreguei uns cinco minutos em examiná-lo.

Era um homem trigueiro, de mediana estatura, magro, débil de forças físicas, mas com uma cabeça e um olhar indicativos de muita energia moral e alentado ânimo.

Tinha um ar de inocência, mas não da inocência abatida e receosa; parecia antes que se glorificava com a prisão, e afrontava a justiça humana, não com a impavidez do malfeitor, mas com a daquele que confia na justiça divina.

Passei a interrogá-lo, começando pela declaração de que eu ia para defendê-lo. Disse-lhe que nada ocultasse dos acontecimentos que o levaram à prisão; e ele, com uma rara placidez de ânimo, contou-me toda a história do seu crime.

Julião fora um daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sustento e trabalho. Suas boas qualidades, a gratidão, o amor, o respeito com que falava e adorava o protetor não ficaram sem uma paga valiosa. Pio, no fim de certo tempo, deu a Julião um sítio que ficava pouco distante da fazenda, para lá fora morar Julião com uma filha menor, cuja mãe morrera em conseqüência dos acontecimentos que levaram Julião a recorrer à proteção do fazendeiro.

Tinha a pequena sete anos. Era, dizia Julião, a mulatinha mais formosa daquelas dez léguas em redor. Elisa, era o nome da pequena, completava a trindade do culto de Julião, ao lado de Pio e da memória da mãe finada.

Laborioso por necessidade e por gosto, Julião bem depressa viu frutificar o seu trabalho. Ainda assim não descansava. Queria, quando morresse, deixar um pecúlio à filha. Morrer sem deixá-la amparada era o sombrio receio que o perseguia. Podia acaso contar com a vida do fazendeiro esmoler?

Este tinha um filho, mais velho três anos que Elisa. Era um bom menino, educado sob a vigilância de seu pai, que desde os tenros anos inspirava-lhe aqueles sentimentos a que devia a sua imensa popularidade.

Carlos e Elisa viviam quase sempre juntos, naquela comunhão da infância que não conhece desigualdades nem condições. Estimavam-se deveras, a ponto de sentirem profundamente quando foi necessário a Carlos ir cursar as primeiras aulas.

Trouxe o tempo as divisões, e anos depois, quando Carlos apeou à porta da fazenda com uma carta de bacharel na algibeira, uma esponja se passara sobre a vida anterior. Elisa, já mulher, podia avaliar os nobres esforços de seu pai, e concentrara todos os afetos de sua alma no mais respeitoso amor filial. Carlos era homem. Conhecia as condições da vida social, e desde os primeiros gestos mostrou que abismo separava o filho do protetor da filha do protegido.

O dia da volta de Carlos foi dia de festa na fazenda do velho Pio. Julião tomou parte na alegria geral, como toda a gente, pobre ou remediada, dos arredores. E a alegria não foi menos pura em nenhum: todos sentiam que a presença do filho do fazendeiro era a felicidade comum.

Passaram-se os dias. Pio não se animava a separar-se de seu filho para que este seguisse uma carreira política, administrativa ou judiciária. Entretanto, notava-lhe muitas diferenças em comparação com o rapaz que, anos antes, lhe saíra de casa. Nem idéias, nem sentimentos, nem hábitos eram os mesmos. Cuidou que fosse um resto da vida escolástica, e esperou que a diferença da atmosfera que voltava a respirar e o espetáculo da vida simples e chã da fazenda o restabelecessem.

O que o magoava sobretudo, é que o filho bacharel não buscasse os livros, onde pudesse, procurando novos conhecimentos, entreter uma necessidade indispensável para o gênero de vida que ia encetar. Carlos não tinha mais que uma ocupação e uma distração: a caça. Levava dias e dias a correr o mato em busca de animais para matar, e nisso fazia consistir todos os cuidados, todos os pensamentos, todos os estudos.

Ao meio-dia era certo vê-lo chegar ao sítio de Julião, e aí descansar um bocado, conversando sobranceiro com a filha do infatigável lavrador. Este chegava, trocava algumas palavras de respeitosa estima com o filho de Pio, oferecia-lhe parte do seu modesto jantar, que o moço não aceitava, e discorria, durante a refeição, sobre os objetos relativos à caça.

Passavam as coisas assim sem alteração de natureza alguma.

Um dia, ao entrar em casa para jantar, Julião notou que sua filha parecia triste. Reparou, e viu-lhe os olhos vermelhos de lágrimas. Perguntou o que era. Elisa respondeu que lhe doía a cabeça; mas durante o jantar, que foi silencioso, Julião observou que sua filha enxugava furtivamente algumas lágrimas. Nada disse; mas, terminado o jantar, chamou-a para junto de si, e com palavras brandas e amigas exigiu-lhe que dissesse o que tinha. Depois de muita relutância, Elisa falou:

— Meu pai, o que eu tenho é simples. O Sr. Carlos, em quem comecei a notar mais amizade que ao princípio, declarou-me hoje que gostava de mim, que eu devia ser dele, que só ele me poderia dar tudo quanto eu desejasse, e muitas outras coisas que eu nem pude ouvir, tal foi o espanto com que ouvi as suas primeiras palavras. Declarei-lhe que não pensasse coisas tais. Insistiu; repeli-o... Então tomando um ar carrancudo, saiu, dizendo-me:

— Hás de ser minha!

Julião estava atônito. Inquiriu sua filha sobre todas as particularidades da conversa referida. Não lhe restava dúvida acerca dos maus intentos de Carlos. Mas como de um tão bom pai pudera sair tão mau filho? perguntava ele. E esse próprio filho não era bom antes de ir para fora? Como exprobrar-lhe a sua má ação? E poderia fazê-lo? Como evitar a ameaça? Fugir do lugar em que morava o pai não era mostrar-se ingrato? Todas estas reflexões passaram pelo espírito de Julião. Via o abismo a cuja borda estava, e não sabia como escapar-lhe.

Finalmente, depois de animar e tranqüilizar sua filha, Julião saiu, de plano feito, na direção da fazenda, em busca de Carlos.

Este, rodeado por alguns escravos, fazia limpar várias espingardas de caça. Julião, depois de cumprimentá-lo alegremente, disse que lhe queria falar em particular. Carlos estremeceu; mas não podia deixar de ceder.

— Que me queres, Julião? disse depois de se afastar um pouco do grupo.

Julião respondeu:

— Sr. Carlos, venho pedir-lhe uma coisa, por alma de sua mãe!... Deixe minha filha sossegada.

— Mas que lhe fiz eu? titubeou Carlos.

— Oh! não negue, porque eu sei.

— Sabe o quê?

— Sei da sua conversa de hoje. Mas o que passou, passou. Fico sendo seu amigo, mais ainda, se me não perseguir a pobre filha que Deus me deu... Promete?

Carlos esteve calado alguns instantes. Depois:

— Basta, disse; confesso-te, Julião, que era uma loucura minha de que me arrependo. Vai tranqüilo: respeitarei tua filha como se fosse morta.

Julião, na sua alegria, quase beijou as mãos de Carlos. Correu à casa e referiu a sua filha a conversa que tivera com o filho de Pai de todos. Elisa não só por si como por seu pai, estimou o pacífico desenlace.

Tudo parecia ter voltado à primeira situação. As visitas de Carlos eram feitas nas horas em que Julião se achava em casa, e além disso, a presença de uma parenta velha, convidada por Julião, parecia tornar impossível nova tentativa de parte de Carlos.

Uma tarde, quinze dias depois do incidente que narrei acima, voltava Julião da fazenda do velho Pio. Era já perto da noite. Julião caminhava vagarosamente, pensando no que lhe faltaria ainda para completar o pecúlio de sua filha. Nessas divagações, não reparou que anoitecera. Quando deu por si, ainda se achava umas boas braças distante de casa. Apressou o passo. Quando se achava mais perto, ouviu uns gritos sufocados. Deitou a correr e penetrou no terreiro que circundava a casa. Todas as janelas estavam fechadas; mas os gritos continuavam cada vez mais angustiosos. Um vulto passou-lhe pela frente e dirigiu-se para os fundos. Julião quis segui-lo; mas os gritos eram muitos, e de sua filha. Com uma força difícil de crer em corpo tão pouco robusto, conseguiu abrir uma das janelas. Saltou, e eis o que viu:

A parenta que convidara a tomar conta da casa estava no chão, atada, amordaçada, exausta. Uma cadeira quebrada, outras em desordem.

— Minha filha! exclamou ele.

E atirou-se para o interior.

Elisa debatia-se nos braços de Carlos, mas já sem forças nem esperanças de obter misericórdia.

No momento em que Julião entrava por uma porta, entrava por outra um indivíduo mal conceituado no lugar, e até conhecido por assalariado nato de todas as violências. Era o vulto que Julião vira no terreiro. E outros haviam ainda, que apareceram a um sinal dado pelo primeiro, mal Julião entrou no lugar em que se dava o triste conflito da inocência com a perversidade.

Julião teve tempo de arrancar Elisa dos braços de Carlos. Cego de raiva, travou de uma cadeira e ia atirar-lha, quando os capangas, entrados a este tempo, o detiveram.

Carlos voltara a si da surpresa que lhe causara a presença de Julião. Recobrando o sangue frio, cravou os olhos odiendos no desventurado pai, e disse-lhe com voz sumida:

— Hás de pagar-me!

Depois, voltando-se para os ajudantes das suas façanhas, bradou:

— Amarrem-no!

Em cinco minutos foi obedecido. Julião não podia lutar contra cinco.

Carlos e quatro capangas saíram. Ficou um de vigia.

Uma chuva de lágrimas rebentou dos olhos de Elisa. Doía-lhe na alma ver seu pai atado daquele modo. Não era já o perigo a que escapara o que a comovia; era não poder abraçar seu pai livre e feliz. E por que estaria atado? Que intentava Carlos fazer? Matá-lo? Estas lúgubres e aterradoras idéias passaram rapidamente pela cabeça de Elisa. Entre lágrimas comunicou-as a Julião.

Este, calmo, frio, impávido, tranqüilizou o espírito de sua filha, dizendo-lhe que Carlos poderia ser tudo, menos um assassino.

Seguiram-se alguns minutos de angustiosa espera. Julião olhava para sua filha e parecia refletir. Depois de algum tempo, disse:

— Elisa, tens realmente a tua desonra por uma grande desgraça?

— Oh! meu pai! exclamou ela.

— Responde: se te faltasse a pureza que recebeste do céu, considerar-te-ias a mais infeliz de todas as mulheres?

— Sim, sim, meu pai!

Julião calou-se.

Elisa chorou ainda. Depois voltou-se para a sentinela deixada por Carlos e quis implorar-lhe misericórdia. Foi atalhada por Julião.

— Não peças nada, disse este. Só há um protetor para os infelizes: é Deus. Há outro depois dele; mas esse está longe... Ó Pai de todos, que filho te deu o Senhor!...

Elisa voltou para junto de seu pai.

— Chega-te para mais perto, disse este.

Elisa obedeceu.

Julião tinha os braços atados; mas podia mover, ainda que pouco, as mãos. Procurou afagar Elisa, tocando-lhe as faces e beijando-lhe a cabeça. Ela inclinou-se e escondeu o rosto no peito de seu pai.

A sentinela não dava fé do que se passava. Depois de alguns minutos do abraço de Elisa e Julião, ouviu-se um grito agudíssimo. A sentinela correu aos dois. Elisa caíra completamente, banhada em sangue.

Julião tinha procurado a custo apoderar-se de uma faca de caça deixada por Carlos sobre uma cadeira. Apenas o conseguiu, cravou-a no peito de Elisa. Quando a sentinela correu para ele, não teve tempo de evitar o segundo golpe, com que Julião tornou mais profunda e mortal a primeira ferida. Elisa rolou no chão nas últimas convulsões.

— Assassino! clamou a sentinela.

— Salvador!... salvei minha filha da desonra!

— Meu pai!... murmurava a pobre pequena expirando.

Julião, voltando-se para o cadáver, disse, derramando duas lágrimas, duas só, mas duas lavas rebentadas do vulcão de sua alma:

— Dize a Deus, minha filha, que te mandei mais cedo para junto dele para salvar-te da desonra.

Depois fechou os olhos e esperou.

Não tardou que entrasse Carlos, acompanhado de uma autoridade policial e vários soldados.

Saindo da casa de Julião, teve a idéia danada de ir declarar à autoridade que o velho lavrador tentara contra a vida dele, razão por que teve de lutar, o conseguira deixá-lo amarrado.

A surpresa de Carlos e dos policiais foi grande. Não cuidavam encontrar o espetáculo que a seus olhos se ofereceu. Julião foi preso. Não negou o crime. Somente reservou-se para contar as circunstâncias dele na ocasião competente.

A velha parenta foi desatada, desamordaçada e conduzida à fazenda de Pio.

Julião, depois de contar-me toda a história cujo resumo acabo de fazer, perguntou-me:

— Diga-me, Sr. doutor, pode ser meu advogado? Não sou criminoso?

— Serei seu advogado. Descanse, estou certo de que os juízes reconhecerão as circunstâncias atenuantes do delito.

— Oh! não é isso que me aterroriza. Seja ou não condenado pelos homens, é coisa que nada monta para mim. Se os juízes não forem pais, não me compreenderão, e então é natural que sigam os ditames da lei. Não matarás, é dos mandamentos eu bem sei...

Não quis magoar a alma do pobre pai continuando naquele diálogo. Despedi-me dele e disse que voltaria depois.

Saí da cadeia alvoroçado. Não era romance, era tragédia o que eu acabava de ouvir. No caminho as idéias se me clarearam. Meu espírito voltou-se vinte e três séculos atrás, e pude ver, no seio da sociedade romana, um caso idêntico ao que se dava na vila de ***.

Todos conhecem a lúgubre tragédia de Virginius. Tito Lívio, Diodoro de Sicília e outros antigos falam dela circunstanciadamente. Foi essa tragédia a precursora da queda dos decênviros. Um destes, Ápio Cláudio, apaixonou-se por Virgínia, filha de Virginius. Como fosse impossível de tomá-la por simples simpatia, determinou o decênviro empregar um meio violento. O meio foi escravizá-la. Peitou um sicofanta, que apresentou-se aos tribunais reclamando a entrega de Virgínia, sua escrava. O desventurado pai, não conseguindo comover nem por seus rogos, nem por suas ameaças, travou de uma faca de açougue e cravou-a no peito de Virgínia.

Pouco depois caíam os decênviros e restabelecia-se o consulado.

No caso de Julião não haviam decênviros para abater nem cônsules para levantar; mas havia a moral ultrajada e a malvadez triunfante. Infelizmente estão ainda longe, esta da geral repulsão, aquela do respeito universal.



CAPÍTULO III

Fazendo todas estas reflexões, encaminhava-me eu para a casa do amigo em que estava hospedado. Ocorreu-me uma idéia, a de ir à fazenda de Pio, autor do bilhete que me chamara da corte, e de quem eu podia saber muita coisa mais.

Não insisto em observar a circunstância de ser o velho fazendeiro quem se interessava pelo réu e pagava as despesas da defesa nos tribunais. Já o leitor terá feito essa observação, realmente honrosa para aquele deus da terra.

O sol, apesar da estação, queimava suficientemente o viandante. Ir a pé à fazenda, quando podia ir a cavalo, era ganhar fadiga e perder tempo sem proveito. Fui à casa e mandei aprontar o cavalo. O meu hóspede não estava em casa. Não quis esperá-lo, e sem mais companhia dirigi-me para a fazenda.

Pio estava em casa. Mandei-lhe dizer que uma pessoa da corte desejava falar-lhe. Fui recebido incontinente.

Achei o velho fazendeiro em conversa com um velho padre. Pareciam, tanto o secular como o eclesiástico, dois verdadeiros soldados do Evangelho combinando-se para a mais extensa prática do bem. Tinham ambos a cabeça branca, o olhar sereno, a postura grave e o gesto despretensioso. Transluzia-lhes nos olhos a bondade do coração. Levantaram-se quando apareci e vieram cumprimentar-me.

O fazendeiro era quem chamava mais a minha atenção, pelo que ouvira dizer dele ao meu amigo e ao pai de Elisa. Pude observá-lo durante alguns minutos. Era impossível ver aquele homem e não adivinhar o que ele era. Com uma palavra branda e insinuante disse-me que diante do capelão não tinha segredos, e que eu dissesse o que tinha para dizer. E começou por me perguntar quem era eu. Disse-lho; mostrei-lhe o bilhete, declarando que sabia ser dele, razão por que o procurara.

Depois de algum silêncio disse-me:

— Já falou ao Julião?

— Já.

— Conhece então toda a história?

— Sei do que ele me contou.

— O que ele lhe contou é o que se passou. Foi uma triste história que me envelheceu ainda mais em poucos dias. Reservou-me o céu aquela tortura para o último quartel da vida. Soube o que fez. É sofrendo que se aprende. Foi melhor. Se meu filho havia de esperar que eu morresse para praticar atos tais com impunidade, bom foi que o fizesse antes, seguindo-se assim ao delito o castigo que mereceu.

A palavra castigo impressionou-me. Não me pude ter e disse-lhe:

— Fala em castigo. Pois castigou seu filho?

— Pois então? Quem é o autor da morte de Elisa?

— Oh!... isso não, disse eu.

— Não foi autor, foi causa. Mas quem foi o autor da violência à pobre pequena? Foi decerto meu filho.

— Mas esse castigo?...

— Descanse, disse o velho adivinhando a minha indiscreta inquietação. Carlos recebeu um castigo honroso, ou, por outra, sofre como castigo aquilo que devia receber como honra. Eu o conheço. Os cômodos da vida que teve, a carta que alcançou pelo estudo, e certa dose de vaidade que todos nós recebemos do berço, e que o berço lhe deu a ele em grande dose, tudo isso é que o castiga neste momento, porque tudo foi desfeito pelo gênero de vida que lhe fiz adotar. Carlos é agora soldado.

— Soldado! exclamei eu.

— É verdade. Objetou-me que era doutor. Disse-lhe que devia lembrar-se de que o era quando penetrou na casa de Julião. A muito pedido, mandei-o para o Sul, com promessa jurada, e avisos particulares e reiterados, de que, mal chegasse ali, assentasse praça em um batalhão de linha. Não é um castigo honroso? Sirva a sua pátria, e guarde a fazenda e a honra dos seus concidadãos: é o melhor meio de aprender a guardar a honra própria.

Continuamos em nossa conversa durante duas horas quase. O velho fazendeiro mostrava-se magoadíssimo sempre que volvíamos a falar do caso de Julião. Depois que lhe declarei que tomava conta da causa em defesa do réu, instou comigo para que nada poupasse a fim de alcançar a diminuição da pena de Julião. Se for preciso, dizia ele, apreciar com as considerações devidas o ato de meu filho, não se acanhe: esqueça-se de mim, porque eu também me esqueço de meu filho.

Cumprimentei aquela virtude romana, despedi-me do padre, e saí, depois de prometer tudo o que me foi pedido.



CAPÍTULO IV

— Então, falaste a Julião? perguntou o meu amigo quando me viu entrar em casa.

— Falei, e falei também ao Pai de todos... Que história, meu amigo!... Parece um sonho.

— Não te disse?... E defendes o réu?

— Com toda a certeza.

Fui jantar, e passei o resto da tarde conversando acerca do ato de Julião e das virtudes do fazendeiro.

Poucos dias depois instalou-se o júri onde tinha de comparecer Julião.

De todas as causas, era aquela a que mais medo me fazia; não que eu duvidasse das atenuantes do crime, mas porque receava não estar na altura da causa.

Toda a noite da véspera foi para mim de verdadeira insônia. Enfim raiou o dia marcado para o julgamento de Julião. Levantei-me, comi pouco e distraído, e vesti-me. Entrou-me no quarto o meu amigo.

— Lá te vou ouvir, disse-me ele abraçando.

Confessei-lhe os meus receios; mas ele, para animar-me, entreteceu uma grinalda de elogios que eu mal pude ouvir, no meio das minhas preocupações.

Saímos.

Dispenso os leitores da narração do que se passou no júri. O crime foi provado pelo depoimento das testemunhas; nem Julião o negou nunca. Mas apesar de tudo, da confissão e da prova testemunhal, auditório, jurados, juiz e promotor, todos tinham pregados no réu olhos de simpatia, admiração e compaixão.

A acusação limitou-se a referir o depoimento das testemunhas, e quando, terminando o seu discurso, teve de pedir a pena para o réu, o promotor mostrava-se envergonhado de estar trêmulo e comovido.

Tocou-me a vez de falar. Não sei o que disse. Sei que as mais ruidosas provas de adesão surgiam no meio do silêncio geral. Quando terminei, dois homens invadiram a sala e abraçaram-me comovidos: o fazendeiro e o meu amigo.

Julião foi condenado a dez anos de prisão. Os jurados tinham ouvido a lei, e igualmente, talvez, o coração.

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CAPÍTULO V

No momento em que escrevo estas páginas, Julião, tendo já cumprido a sentença, vive na fazenda de Pio. Pio não quis que ele voltasse ao lugar em que se dera a catástrofe, e fá-lo residir ao pé de si.

O velho fazendeiro tinha feito recolher as cinzas de Elisa em uma urna, ao pé da qual vão ambos orar todas as semanas.

Aqueles dois pais, que assistiram ao funeral das suas esperanças, acham-se ligados intimamente pelos laços do infortúnio.

Na fazenda fala-se sempre de Elisa, mas nunca de Carlos. Pio é o primeiro a não magoar o coração de Julião com a lembrança daquele que o levou a matar sua filha.

Quanto a Carlos, vai resgatando como pode o crime com que atentou contra a honra de uma donzela e contra a felicidade de dois pais.

O país das quimeras, 1862


Texto-Fonte:
http://www2.uol.com.br/machadodeassis

Publicado originalmente em O Futuro, 1862.






Arrependera-se Catão de haver ido algumas vezes por mar quando podia ir por terra. O virtuoso romano tinha razão. Os carinhos de Anfitrite são um tanto raivosos, e muitas vezes funestos. Os feitos marítimos dobram de valia por esta circunstância, e é também por esta circunstância que se esquivam de navegar as almas pacatas, ou, para falar mais decentemente, os espíritos prudentes e seguros.

Mas, para justificar o provérbio que diz: debaixo dos pés se levantam os trabalhos — a via terrestre não é absolutamente mais segura que a via marítima, e a história dos caminhos de ferro, pequena embora, conta já não poucos e tristes episódios.

Absorto nestas e noutras reflexões estava o meu amigo Tito, poeta aos vinte anos, sem dinheiro e sem bigode, sentado à mesa carunchosa do trabalho, onde ardia silenciosamente uma vela.

Devo proceder ao retrato físico e moral do meu amigo Tito.

Tito não é nem alto nem baixo, o que equivale a dizer que é de estatura mediana, a qual estatura é aquela que se pode chamar francamente elegante na minha opinião. Possuindo um semblante angélico, uns olhos meigos e profundos, o nariz descendente legítimo e direto do de Alcibíades, a boca graciosa, a fronte larga como o verdadeiro trono do pensamento, Tito pode servir de modelo à pintura e de objeto amado aos corações de quinze e mesmo de vinte anos.

Como as medalhas, e como todas as coisas deste mundo de compensações, Tito tem um reverso. Oh! triste coisa que é o reverso das medalhas! Podendo ser, do colo para cima, modelo à pintura, Tito é uma lastimosa pessoa no que toca ao resto. Pés prodigiosamente tortos, pernas zambras, tais são os contras que a pessoa do meu amigo oferece a quem se extasia diante dos magníficos prós da cara e da cabeça. Parece que a natureza se dividira para dar a Tito o que tinha de melhor e o que tinha de pior, e pô-lo na miserável e desconsoladora condição do pavão, que se enfeita e contempla radioso, mas cujo orgulho se abate e desfalece quando olha para as pernas e para os pés.

No moral Tito apresenta o mesmo aspecto duplo do físico. Não tem vícios, mas tem fraquezas de caráter que quebram, um tanto ou quanto, as virtudes que o enobrecem. É bom e tem a virtude evangélica da caridade; sabe, como o divino Mestre, partir o pão da subsistência e dar de comer ao faminto, com verdadeiro júbilo de consciência e de coração. Não consta, além disso, que jamais fizesse mal ao mais impertinente bicho, ou ao mais insolente homem, duas coisas idênticas, nos curtos dias da sua vida. Pelo contrário, conta-se que a sua piedade e bons instintos o levaram uma vez a ficar quase esmagado, procurando salvar da morte uma galga que dormia na rua, e sobre a qual ia quase passando um carro. A galga, salva por Tito, afeiçoou-se-lhe tanto que nunca mais o deixou; à hora em que o vemos absorto em pensamentos vagos está ela estendida sobre a mesa a contemplá-lo grave e sisuda.

Só há que censurar em Tito as fraquezas de caráter, e deve-se crer que elas são filhas mesmo das suas virtudes. Tito vendia outrora as produções da sua musa, não por meio de uma permuta legítima de livro e moeda, mas por um meio desonroso e nada digno de um filho de Apolo. As vendas que fazia eram absolutas, isto é, trocando por dinheiro os seus versos, o poeta perdia o direito da paternidade sobre essas produções. Só tinha um freguês; era um sujeito rico, maníaco pela fama de poeta, e que, sabendo da facilidade com que Tito rimava, apresentou-se um dia no modesto albergue do poeta e entabulou a negociação por estes termos:

— Meu caro, venho propor-lhe um negócio da China...

— Pode falar, respondeu Tito.

— Ouvi dizer que você fazia versos... É verdade?

Tito conteve-se a custo diante da familiaridade do tratamento, e respondeu:

— É verdade.

— Muito bem. Proponho-lhe o seguinte: compro-lhe por bom preço todos os seus versos, não os feitos, mas os que fizer de hoje em diante, com a condição de que os hei de dar à estampa como obra da minha lavra. Não ponho outras condições ao negócio: advirto-lhe, porém, que prefiro as odes e as poesias de sentimento. Quer?

Quando o sujeito acabou de falar, Tito levantou-se e com um gesto mandou-o sair. O sujeito pressentiu que, se não saísse logo, as coisas poderiam acabar mal. Preferiu tomar o caminho da porta, dizendo entre dentes: “Hás de procurar-me, deixa estar!”

O meu poeta esqueceu no dia seguinte a aventura da véspera, mas os dias passaram-se e as necessidades urgentes apresentaram-se à porta com o olhar suplicante e as mãos ameaçadoras. Ele não tinha recursos; depois de uma noite atribulada, lembrou-se do sujeito, e tratou de procurá-lo; disse-lhe quem era, e que estava disposto a aceitar o negócio; o sujeito, rindo-se com um riso diabólico, fez o primeiro adiantamento, sob a condição de que o poeta lhe levaria no dia seguinte uma ode aos Polacos. Tito passou a noite a arregimentar palavras sem idéia, tal era seu estado, e no dia seguinte levou a obra ao freguês, que a achou boa e dignou-se apertar-lhe a mão.

Tal é a face moral de Tito. A virtude de ser pagador em dia levava-o a mercar com os dons de Deus; e ainda assim vemos nós que ele resistiu, e só foi vencido quando se achou com a corda ao pescoço.

A mesa à qual Tito estava encostado era um traste velho e de lavor antigo; herdara-a de uma tia que lhe havia morrido fazia dez anos. Um tinteiro de osso, uma pena de ave, algum papel, eis os instrumentos de trabalho de Tito. Duas cadeiras e uma cama completavam a sua mobília. Já falei na vela e na galga.

À hora em que Tito se engolfava em reflexões e fantasias era noite alta. A chuva caía com violência, e os relâmpagos que de instante a instante rompiam o céu deixavam ver o horizonte pejado de nuvens negras e túmidas. Tito nada via, porque estava com a cabeça encostada nos braços, e estes sobre a mesa; e é provável que não ouvisse, porque se entretinha em refletir nos perigos que oferecem os diferentes modos de viajar.

Mas qual o motivo destes pensamentos em que se engolfava o poeta? É isso que eu vou explicar à legitima curiosidade dos leitores. Tito, como todos os homens de vinte anos, poetas e não poetas, sentia-se afetado da doença do amor. Uns olhos pretos, um porte senhoril, uma visão, uma criatura celestial, qualquer coisa por este teor, havia influído por tal modo no coração de Tito, que o pusera, pode-se dizer, à beira da sepultura. O amor em Tito começou por uma febre; esteve três dias de cama, e foi curado (da febre e não do amor) por uma velha da vizinhança, que conhecia o segredo das plantas virtuosas, e que pôs o meu poeta de pé, com o que adquiriu mais um título à reputação de feiticeira, que os seus milagrosos curativos lhe haviam granjeado.

Passado o período agudo da doença, ficou-lhe este resto de amor, que, apesar da calma e da placidez, nada perde da sua intensidade. Tito estava ardentemente apaixonado, e desde então começou a defraudar o freguês das odes, subtraindo-lhe algumas estrofes inflamadas, que dedicava ao objeto dos seus íntimos pensamentos, tal qual como aquele Sr. d’Ofayel, dos amores leais e pudicos, com quem se pareceu, não na sensaboria dos versos, mas no infortúnio amoroso.

O amor contrariado, quando não leva a um desdém sublime da parte do coração, leva à tragédia ou à asneira. Era nesta alternativa que se debatia o espírito do meu poeta. Depois de haver gasto em vão o latim das musas, aventurou uma declaração oral à dama dos seus pensamentos. Esta ouviu-o com dureza d’alma, e quando ele acabou de falar disse-lhe que era melhor voltar à vida real, e deixar musas e amores, para cuidar do alinho da própria pessoa. Não presuma o leitor que a dama de quem lhe falo tinha a vida tão desenvolta como a língua. Era, pelo contrário, um modelo da mais seráfica pureza e do mais perfeito recato de costumes; recebera a educação austera de seu pai, antigo capitão de milícias, homem de incrível boa fé, que, neste século desabusado, ainda acreditava em duas coisas: nos programas políticos e nas cebolas do Egito.

Desenganado de uma vez nas suas pretensões, Tito não teve força de ânimo para varrer da memória a filha do militar; e a resposta crua e desapiedada da moça estava-lhe no coração como um punhal frio e penetrante. Tentou arrancá-lo, mas a lembrança, viva sempre, como ara de Vesta, trazia-lhe as fatais palavras ao meio das suas horas mais alegres ou menos tristes da sua vida, como aviso de que a sua satisfação não podia durar e que a tristeza era o fundo real dos seus dias. Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade.

Quando, depois de voltar a si, Tito conseguiu encadear duas idéias e tirar delas uma conseqüência, dois projetos se lhe apresentaram, qual mais próprio a granjear-lhe a vilta de pusilânime; um concluía pela tragédia, outro pela asneira; triste alternativa dos corações não compreendidos! O primeiro desses projetos era simplesmente deixar este mundo; o outro, limitava-se a uma viagem, que o poeta faria por mar ou por terra, a fim de deixar por algum tempo a capital. Já o poeta abandonava o primeiro por achá-lo sanguinolento e definitivo; o segundo parecia-lhe melhor, mais consentâneo com a sua dignidade e sobretudo com os seus instintos de conservação. Mas qual o meio de mudar de sítio? Tomaria por terra? tomaria por mar? Qualquer destes dois meios tinha seus inconvenientes. Estava o poeta nestas averiguações, quando ouviu que batiam à porta três pancadinhas. Quem seria? Quem poderia ir procurar o poeta àquela hora? Lembrou-se que tinha umas encomendas do homem das odes e foi abrir a porta disposto a ouvir resignado a muito plausível sarabanda que ele lhe vinha naturalmente pregar. Mas, ó pasmo! mal o poeta abriu a porta, eis que uma sílfide, uma criatura celestial, vaporosa, fantástica, trajando vestes alvas, nem bem de pano, nem bem de névoas, uma coisa entre as duas espécies, pés alígeros, rosto sereno e insinuante, olhos negros e cintilantes, cachos loiros do mais leve e delicado cabelo, a caírem-lhe graciosos pelas espáduas nuas, divinas, como as tuas, ó Afrodite! eis que uma criatura assim invade o aposento do poeta e, estendendo a mão, ordena-lhe que feche a porta e tome assento à mesa.

Tito estava assombrado. Maquinalmente voltou ao seu lugar sem tirar os olhos da visão. Esta sentou-se defronte dele e começou a brincar com a galga que dava mostras de não usado contentamento. Passaram-se nisto dez minutos; depois do que a peregrina singular criatura cravando os seus olhos nos do poeta, perguntou-lhe com uma doçura de voz nunca ouvida:

— Em que pensas, poeta? Pranteias algum amor mal parado? Sofres com a injustiça dos homens? Dói-te a desgraça alheia, ou é a própria que te sombreia a fronte?

Esta indagação era feita de um modo tão insinuante que Tito, sem inquirir o motivo da curiosidade, respondeu imediatamente:

— Penso na injustiça de Deus.

— É contraditória a expressão; Deus é a justiça.

— Não é. Se fosse teria repartido irmãmente a ternura pelos corações e não consentiria que um ardesse inutilmente pelo outro. O fenômeno da simpatia devia ser sempre recíproco, de maneira que a mulher não pudesse olhar com frieza para o homem, quando o homem levantasse olhos de amor para ela.

— Não és tu quem fala, poeta. É o teu amor-próprio ferido pela má paga do teu afeto. Mas de que te servem as musas? Entra no santuário da poesia, engolfa-te no seio da inspiração, esquecerás aí a dor da chaga que o mundo te abriu.

— Coitado de mim, respondeu o poeta, que tenho a poesia fria, e apagada a inspiração!

— De que precisas tu para dar vida à poesia e à inspiração?

— Preciso do que me falta... e falta-me tudo.

— Tudo? És exagerado. Tens o selo com que Deus te distinguiu dos outros homens e isso te basta. Cismavas em deixar esta terra?

— É verdade.

— Bem; venho a propósito. Queres ir comigo?

— Para onde?

— Que importa? Queres vir?

— Quero. Assim me distrairei. Partiremos amanhã. É por mar, ou por terra?

— Nem amanhã, nem por mar, nem por terra; mas hoje, e pelo ar.

Tito levantou-se e recuou. A visão levantou-se também.

— Tens medo? perguntou ela.

— Medo, não, mas...

— Vamos. Faremos uma deliciosa viagem.

— Vamos.

Não sei se Tito esperava um balão para a viagem aérea a que o convidava a inesperada visita; mas, o que é certo, é que os seus olhos se arregalaram prodigiosamente quando viu abrirem-se das espáduas da visão duas longas e brancas asas que ela começou a agitar e das quais caía uma poeira de ouro.

— Vamos, disse a visão.

Tito repetiu maquinalmente:

— Vamos!

E ela tomou-o nos braços, subiu com ele até o teto, que se rasgou, e passaram ambos, visão e poeta. A tempestade tinha, como por encanto, cessado; estava o céu limpo, transparente, luminoso, verdadeiramente celeste, enfim. As estrelas fulgiam com a sua melhor luz, e um luar branco e poético caía sobre os telhados das casas e sobre as flores e a relva dos campos.

Os dois subiram.

Durou a ascensão algum tempo. Tito não podia pensar; ia atordoado, e subia sem saber para onde, nem a razão por quê. Sentia que o vento agitava os cabelos loiros da visão, e que eles lhe batiam docemente na face, do que resultava uma exalação celeste que embriagava e adormecia. O ar estava puro e fresco. Tito, que se havia distraído algum tempo da ocupação das musas no estudo das leis físicas, contava que, naquele subir continuado, breve chegariam a sentir os efeitos da rarefação da atmosfera. Engano dele! Subiam sempre, e muito, mas a atmosfera conservava-se sempre a mesma, e quanto mais ele subia melhor respirava.

Isto passou rápido pela mente do poeta. Como disse, ele não pensava; ia subindo sem olhar para a terra. E para que olharia para a terra? A visão não podia conduzi-lo senão ao céu.

Em breve começou Tito a ver os planetas fronte por fronte. Era já sobre a madrugada. Vênus, mais pálida e loira que de costume, ofuscava as estrelas com o seu clarão e com a sua beleza. Tito teve um olhar de admiração para a deusa da manhã. Mas subia, subiam sempre. Os planetas passavam à ilharga do poeta, como se fossem corcéis desenfreados. Afinal penetraram em uma região inteiramente diversa das que haviam atravessado naquela assombrosa viagem. Tito sentiu expandir-se-lhe a alma na nova atmosfera. Seria aquilo o céu? O poeta não ousava perguntar, e mudo esperava o termo da viagem. À proporção que penetravam nessa região ia-se a alma do poeta rompendo em júbilo; daí a algum tempo entravam em um planeta; a fada depôs o poeta e começaram a fazer o trajeto a pé.

Caminhando, os objetos, até então vistos através de um nevoeiro, tomavam aspecto de coisas reais. Tito pôde ver então que se achava em uma nova terra, a todos os respeitos estranha: o primeiro aspecto vencia ao que oferece a poética Istambul ou a poética Nápoles. Mais entravam, porém, mais os objetos tomavam o aspecto da realidade. Assim chegaram à grande praça onde estavam construídos os reais paços. A habitação régia era, por assim dizer, uma reunião de todas as ordens arquitetônicas, sem excluir a chinesa, sendo de notar que esta última fazia não mediana despesa na estrutura do palácio.

Tito quis sair da ânsia em que estava por saber em que país acabava de entrar, e aventurou uma pergunta à sua companheira.

— Estamos no país das Quimeras, respondeu ela.

— No país das Quimeras?

— Das Quimeras. País para onde viaja três quartas partes do gênero humano, mas que não se acha consignado nas tábuas da ciência.

Tito contentou-se com a explicação. Mas refletiu sobre o caso. Por que motivo iria parar ali? A que era levado? Estava nisto quando a fada o advertiu de que eram chegados à porta do palácio. No vestíbulo havia uns vinte ou trinta soldados que fumavam em grosso cachimbo de escuma do mar, e que se embriagavam com outros tantos padixás, na contemplação dos novelos de fumo azul e branco que lhes saíam da boca. À entrada dos dois houve continência militar. Subiram pela grande escadaria, e foram ter aos andares superiores.

— Vamos falar aos soberanos, disse a companheira do poeta. Atravessaram muitas salas e galerias. Todas as paredes, como no poema de Dinis, eram forradas de papel prateado e lantejoulas.

Afinal penetraram na grande sala. O gênio das bagatelas, de que fala Elpino, estava sentado em um trono de casquinha, tendo de ornamento dois pavões, um de cada lado. O próprio soberano tinha por coifa um pavão vivo, atado pelos pés a uma espécie de solidéu, maior que os dos nossos padres, o qual por sua vez ficava firme na cabeça por meio de duas largas fitas amarelas, que vinham atar-se debaixo dos reais queixos. Coifa idêntica adornava a cabeça dos gênios da corte, que correspondem aos viscondes deste mundo e que cercavam o trono do brilhante rei. Todos aqueles pavões, de minuto a minuto, armavam-se, apavoneavam-se, e davam os guinchos do costume.

Quando Tito entrou na grande sala pela mão da visão, houve um murmúrio entre os fidalgos quiméricos. A visão declarou que ia apresentar um filho da terra. Seguiu-se a cerimônia da apresentação, que era uma enfiada de cortesias, passagens e outras coisas quiméricas, sem excluir a formalidade do beija-mão. Não se pense que Tito foi o único a beijar a mão ao gênio soberano; todos os presentes fizeram o mesmo, porque, segundo Tito ouviu depois, não se dá naquele país o ato mais insignificante sem que esta formalidade seja preenchida.

Depois da cerimônia da apresentação perguntou o soberano ao poeta que tratamento tinha na terra, para dar-se-lhe cicerone correspondente.

— Eu, disse Tito, tenho, se tanto, uma triste Mercê.

— Só isso? Pois há de ter o desprazer de ser acompanhado pelo cicerone comum. Nós temos cá a Senhoria, a Excelência, a Grandeza, e outras mais; mas, quanto à Mercê, essa, tendo habitado algum tempo este país, tornou-se tão pouco útil que julguei melhor despedi-la.

A este tempo a Senhoria e a Excelência, duas criaturas empertigadas, que se haviam aproximado do poeta, voltaram-lhe as costas, encolhendo os ombros e deitando-lhe um olhar de través com a maior expressão de desdém e pouco caso.

Tito quis perguntar à sua companheira o motivo deste ato daquelas duas quiméricas pessoas; mas a visão puxou-lhe pelo braço, e fez-lhe ver com um gesto que estava desatendendo ao Gênio das Bagatelas, cujos sobrolhos se contraíram, como dizem os poetas antigos que se contraíam os de Júpiter Tonante.

Neste momento entrou um bando de moçoilas frescas, lépidas, bonitas e loiras... oh! mas de um loiro que se não conhece entre nós, os filhos da terra! Entraram elas a correr, com a agilidade de andorinhas que voam; e depois de apertarem galhofeiramente a mão aos gênios da corte foram ao Gênio soberano, diante de quem fizeram umas dez ou doze mesuras.

Quem eram aquelas raparigas? O meu poeta estava de boca aberta. Indagou da sua guia, e soube. Eram as Utopias e as Quimeras que iam da terra, onde haviam passado a noite na companhia de alguns homens e mulheres de todas as idades e condições.

As Utopias e as Quimeras foram festejadas pelo soberano, que se dignou sorrir-lhes e bater-lhes na face. Elas alegres e risonhas receberam os carinhos reais como coisa que lhes era devida; e depois de dez ou doze mesuras, repetição das anteriores, foram-se da sala, não sem abraçarem ou beliscarem o meu poeta, que olhava espantado para elas sem saber por que se tornara objeto de tanta jovialidade. O seu espanto crescia de ponto quando ouvia a cada uma delas esta expressão muito usada nos bailes de máscaras: Eu te conheço!

Depois que saíram todas, o Gênio fez um sinal, e toda a atenção concentrou-se no soberano, a ver o que ia sair-lhe dos lábios. A expectativa foi burlada, porque o gracioso soberano apenas com um gesto indicou ao cicerone comum o mísero hóspede que daqui tinha ido. Seguiu-se a cerimônia da saída, que durou longos minutos, em virtude das mesuras, cortesias e beija-mão do estilo.

Os três, o poeta, a fada condutora e o cicerone, passaram à sala da rainha. A real senhora era uma pessoa digna de atenção a todos os respeitos; era imponente e graciosa; trajava vestido de gaze e roupa da mesma fazenda, borzeguins de cetim alvo, pedras finas de todas as espécies e cores, nos braços, no pescoço e na cabeça; na cara trazia posturas finíssimas, e com tal arte, que parecia haver sido corada pelo pincel da natureza; dos cabelos recendiam ativos cosméticos e delicados óleos.

Tito não disfarçou a impressão que lhe causava um todo assim. Voltou-se para a companheira de viagem e perguntou como se chamava aquela deusa.

— Não a vê? respondeu a fada; não vê as trezentas raparigas que trabalham em torno dela? Pois então? é a Moda, cercada de suas trezentas belas, caprichosas filhas.

A estas palavras Tito lembrou-se do Hissope. Não duvidava já de que estava no país das Quimeras; mas, raciocinou ele, para que Dinis falasse de algumas destas coisas, é preciso que cá tivesse vindo e voltasse, como está averiguado. Portanto, não devo recear de cá ficar morando eternamente. Descansado por este lado, passou a atentar para os trabalhos das companheiras da rainha; eram umas novas modas que se estavam arranjando, para vir a este mundo substituir as antigas.

Houve apresentação com o cerimonial do estilo. Tito estremeceu quando pousou os lábios na mão fina e macia da soberana; esta não reparou, porque tinha na mão esquerda um psiquê, onde se mirava de momento em momento.

Impetraram os três licença para continuar a visita do palácio e seguiram pelas galerias e salas do alcáçar. Cada sala era ocupada por um grupo de pessoas, homens ou mulheres, algumas vezes mulheres e homens, que se ocupavam nos diferentes misteres de que estavam incumbidos pela lei do país, ou por ordem arbitrária do soberano. Tito percorria essas diversas salas com o olhar espantado, estranhando o que via, aquelas ocupações, aqueles costumes, aqueles caracteres. Em uma das salas um grupo de cem pessoas ocupava-se em adelgaçar uma massa branca, leve e balofa. Naturalmente este lugar é a ucharia, pensou Tito; estão preparando alguma iguaria singular para o almoço do rei. Indagou do cicerone se havia acertado. O cicerone respondeu:

— Não, senhor; estes homens estão ocupados em preparar massa cerebral para um certo número de homens de todas as classes: estadistas, poetas, namorados, etc.; serve também a mulheres. Esta massa é especialmente para aqueles que, no seu planeta, vivem com verdadeiras disposições do nosso país, aos quais fazemos presente deste elemento constitutivo.

— É massa quimérica?

— Da melhor que se há visto até hoje.

— Pode ver-se?

O cicerone sorriu; chamou o chefe da sala, a quem pediu um pouco de massa. Este foi com prontidão ao depósito e tirou uma porção que entregou a Tito. Mal o poeta a tomou das mãos do chefe desfez-se a massa, como se fora composta de fumo. Tito ficou confuso; mas o chefe, batendo-lhe no ombro:

— Vá descansado, disse; nós temos à mão matéria-prima; é da nossa própria atmosfera que nos servimos; e a nossa atmosfera não se esgota.

Este chefe tinha uma cara insinuante, mas, como todos os quiméricos, era sujeito a abstrações, de modo que Tito não pôde arrancar-lhe mais uma palavra, porque ele, ao dizer as últimas, começou a olhar para o ar e a contemplar o vôo de uma mosca.

Este caso atraiu os companheiros que se chegaram a ele e mergulharam-se todos na contemplação do alado inseto.

Os três continuaram caminho.

Mais adiante era uma sala onde muitos quiméricos, à roda de mesas, discutiam os diferentes modos de inspirar aos diplomatas e diretores deste nosso mundo os pretextos para encher o tempo e apavorar os espíritos com futilidades e espantalhos. Esses homens tinham ares de finos e espertos. Havia ordem do soberano para não se entrar naquela sala em horas de trabalho; uma guarda estava à porta. A menor distração daquele congresso seria considerada uma calamidade pública.

Andou o meu poeta de sala em sala, de galeria em galeria, aqui, visitando um museu, ali, um trabalho ou um jogo; teve tempo de ver tudo, de tudo examinar, com atenção e pelo miúdo. Ao passar pela grande galeria que dava para a praça, viu que o povo, reunido embaixo das janelas, cercava uma forca. Era uma execução que ia ter lugar. Crime de morte? perguntou Tito, que tinha a nossa legislação na cabeça. Não, responderam-lhe, crime de lesa-cortesia. Era um quimérico que havia cometido o crime de não fazer a tempo e com graça uma continência; este crime é considerado naquele país como a maior audácia possível e imaginável. O povo quimérico contemplou a execução como se assistisse a um espetáculo de saltimbancos, entre aplausos e gritos de prazer.

Entretanto era a hora do almoço real. À mesa do gênio soberano só se sentavam o rei, a rainha, dois ministros, um médico e a encantadora fada que havia levado o meu poeta àquelas alturas. A fada, antes de sentar-se à mesa, implorou do rei a mercê de admitir Tito ao almoço; a resposta foi afirmativa; Tito tomou assento. O almoço foi o mais sucinto e rápido que é possível imaginar. Durou alguns segundos, depois do que todos se levantaram, e abriu-se mesa para o jogo das reais pessoas; Tito foi assistir ao jogo; em roda da sala havia cadeiras, onde estavam sentadas as Utopias e as Quimeras; às costas dessas cadeiras empertigavam-se os fidalgos quiméricos, com os seus pavões e as suas vestiduras de escarlate. Tito aproveitou a ocasião para saber como é que o conheciam aquelas assanhadas raparigas. Encostou-se a uma cadeira e indagou da Utopia que se achava nesse lugar. Esta impetrou licença, e depois das formalidades do costume, retirou-se a uma das salas com o poeta, e aí perguntou-lhe:

— Pois deveras não sabes quem somos? Não nos conheces?

— Não as conheço, isto é, conheço-as agora, e isso dá-me verdadeiro pesar, porque quisera tê-las conhecido há mais tempo.

— Oh! sempre poeta!

— É que deveras são de uma gentileza sem rival. Mas onde é que me viram?

— Em tua própria casa.

— Oh!

— Não te lembras? À noite, cansado das lutas do dia, recolhes-te ao aposento, e aí, abrindo velas ao pensamento, deixas-te ir por um mar sereno e calmo. Nessa viagem acompanham-te algumas raparigas... somos nós, as Utopias, nós, as Quimeras.

Tito compreendeu afinal uma coisa que se lhe estava a dizer havia tanto tempo. Sorriu-se, e cravando os seus belos e namorados olhos nos da Utopia, que tinha diante de si, disse:

— Ah! sois vós, é verdade! Consoladora companhia que me distrai de todas as misérias e pesares. É no seio de vós que eu enxugo as minhas lágrimas. Ainda bem! Conforta-me ver-vos a todas de face e embaixo de forma palpável.

— E queres saber, tornou a Utopia, quem nos leva a todas para tua companhia? Olha, vê.

O poeta voltou a cabeça e viu a peregrina visão, sua companheira de viagem.

— Ah! é ela! disse o poeta.

— É verdade. É a loira Fantasia, a companheira desvelada dos que pensam e dos que sentem.

A Fantasia e a Utopia entrelaçaram-se as mãos e olhavam para Tito. Este, como que enlevado, olhava para ambas. Durou isto alguns segundos; o poeta quis fazer algumas perguntas, mas quando ia falar reparou que as duas se haviam tornado mais delgadas e vaporosas. Articulou alguma coisa; porém, vendo que elas iam ficando cada vez mais transparentes, e distinguindo-lhes já pouco as feições, soltou estas palavras: — Então! que é isto? por que se desfazem assim? — Mais e mais as sombras desapareciam, o poeta correu à sala do jogo; espetáculo idêntico o esperava; era pavoroso; todas as figuras se desfaziam como se fossem feitas de névoa. Atônito e palpitante, Tito percorreu algumas galerias e afinal saiu à praça; todos os objetos estavam sofrendo a mesma transformação. Dentro de pouco Tito sentiu que lhe faltava apoio aos pés e viu que estava solto no espaço.

Nesta situação soltou um grito de dor. Fechou os olhos e deixou-se ir como se tivesse de encontrar por termo de viagem a morte.

Era na verdade o mais provável. Passados alguns segundos, Tito abriu os olhos e viu que caía perpendicularmente sobre um ponto negro que lhe parecia do tamanho de um ovo. O corpo rasgava como raio o espaço. O ponto negro cresceu, cresceu, e cresceu até fazer-se do tamanho de uma esfera. A queda do poeta tinha alguma coisa de diabólica; ele soltava de vez em quando um gemido; o ar, batendo-lhe nos olhos, obrigava-o a fechá-los de instante a instante. Afinal, o ponto negro que havia crescido, continuava a crescer, até aparecer ao poeta com o aspecto da terra. É a terra! disse Tito consigo.

Creio que não haverá expressão humana para mostrar a alegria que sentiu aquela alma, perdida no espaço, quando reconheceu que se aproximava do planeta natal. Curta foi a alegria. Tito pensou, e pensou bem, que naquela velocidade quando tocasse em terra seria para nunca mais levantar. Teve um calafrio: viu a morte diante de si, e encomendou a alma a Deus. Assim foi, foi, ou antes, veio, veio, até que — milagre dos milagres! — caiu sobre uma praia, de pé, firme como se não houvesse dado aquele infernal salto.

A primeira impressão, quando se viu em terra, foi de satisfação; depois tratou de ver em que região do planeta se achava; podia ter caído na Sibéria ou na China; verificou que se achava a dois passos de casa. Apressou-se o poeta a voltar aos seus pacíficos lares.

A vela estava gasta; a galga, estendida sob a mesa, tinha os olhos fitos na porta. Tito entrou e atirou-se sobre a cama, onde adormeceu, refletindo no que lhe acabava de acontecer.

Desde então Tito possui um olhar de lince, e diz, à primeira vista, se um homem traz na cabeça miolos ou massa quimérica. Devo declarar que poucos encontra que não façam provisão desta última espécie. Diz ele, e tenho razões para crer, que eu entro no número das pouquíssimas exceções. Em que pese aos meus desafeiçoados, não posso retirar a minha confiança de um homem que acaba de fazer tão pasmosa viagem, e que pôde olhar de face o trono cintilante do rei das Bagatelas.

Bagatela, 1859

Texto-fonte:
Contos de Machados de Assis: Relicários e raisonnés, de Mauro Rosso,
Editora PUC Rio, Edições Loyola, Rio de Janeiro, 2008.

Publicado originalmente em A Marmota, de 10/05 a 30/08/1859.











I

Um dia do mês de maio de 1842, numa das últimas janelas de uma casa, que forma a esquina da rua Hautefeuille e da rua Serpente, estava encostado um moço pensativo e melancólico.

Era — para usar da expressão da Torre de Nesle — uma bela cabeça que mais de uma rapariga teria visto passar em seus sonhos. Não uma bela cabeça, à maneira dos keepsakes mas a pálida e inteligente fisionomia que se encontra muitas vezes nas obras de Lemud e em seu mestre Volfrand, além de outras; bem o sabeis, leitor, este ouvinte atraente e grave do primeiro plano.

Percebia-se a vida da alma através do invólucro do corpo; e depois de contemplar aquele rosto que revelava o trabalho interior, não podia haver engano, e era força exclamar: — É um artista ou um poeta.

Henrique d'Auberseint era com efeito uma e outra coisa. Poeta, ele o era, como todas as criaturas felizmente dotadas e maravilhosamente organizadas para o sofrimento. Porquanto a alma do homem inteligente, o coração do poeta, do artista ou do filósofo, é um alaúde que vibra harmonioso e sonoro ao sopro de todas as paixões humanas, grandes, fortes e belas.

Henrique era, pois, poeta. Mas sobretudo era artista. Há nos cais, nas exposições de amostras de certos comerciantes, essas fitas que não estão seladas com um nome, mas que são obras-primas. Uma obra-prima, assinada com um nome obscuro, será acaso uma obra-prima? Obscuro — quanto nos temos votado a este rude trabalho, orvalhado de suor do sangue, que se chama vida de artista — obscuro quer dizer pobre. Henrique era pobre. Ah! Implacável e madrasta natureza, bem faz aquele que te morde no seio para forçar-te a alimentá-la! É andar — há de ser sempre feliz...

Henrique foi perturbado em seu cismar por um rumor de passos precipitados que se fez ouvir na escada. A porta da mansarda abriu-se bruscamente e entrou uma mulher.

— Bagatela! — exclamou o artista levantando-se e indo ao seu encontro.

— Onde está ele? — pronunciou ela com uma voz entrecortada pela fadiga, tomando a mão do mancebo e voltando para ele seus olhos obscurecidos pelas lágrimas.

Henrique não compreendeu ao princípio esta pergunta proferida de envolta com um soluço aos seus ouvidos inquietos, e durante alguns minutos ele contemplou Bagatela com admiração.

O semblante da moça radiava neste momento com uma beleza sobrenatural que não lhe era comum talvez. As grandes dores desfiguram, assim como as grandes alegrias.

Ela era bela, como uma bela virgem — com a elegância de maneiras e fineza de trato de uma parisiense. Era bela, muito bela!

— Mas o que acontece? pergunta Henrique com uma ansiedade, que crescia de minuto em minuto.

— Mas desapareceu! Há dois dias que não se tem notícias dele! — respondeu Bagatela com um ar sombrio. E se meus pressentimentos não se enganam, — ajuntou ela com um novo soluço e novas lágrimas — morreu!

Henrique soltou um grito.

— Tomai, — continuou a moça apresentando-lhe uma carta — lede depressa... eu vo-lo conjuro... Lede depressa... Acabam de ma entregar e é para vós... Reconheci a letra do nosso amigo... Estive a ponto de abri-la... Vede... Lede, Henrique, lede em nome do céu!

Henrique, trêmulo, com os olhos perturbados, abriu convulsivamente a carta que a moça lhe apresentara, e leu o que segue:

É um morto que te escreve, meu caro Henrique, um verdadeiro morto, com a tinta negra do Estígio lago, e com uma pena arrancada à asa de uma qualquer ave noturna ou maligna, vampiro ou o que quiseres.

Não grites, não lamentes, não chores. As lamentações ensurdecem, e as lágrimas, vês-tu, são uma parvoíce... O fato está já consumado, e não é mais possível uma volta:

— Quem volta de tão longe?...

Faço-te a minha derradeira confissão, com certos conselhos e certas recomendações, que te peço tenhas sempre em vista.

Tive uma mãe, como qualquer porteiro, mas, conquanto saibamos sempre que procedemos de alguém — segundo a opinião de Brid'oison, estou, todavia, embaraçadíssimo quanto a afirmar de quem sou filho. É imoral, mas é verdade. Quanto ao meu nome — nada sei de legal — pela ausência de qualquer declaração de meus autores nos registros da municipalidade. Mas eu tenho um, fantasiado, todo ao acaso, entre os nomes calendários: é — Máximo — nem mais, nem menos.

Máximo — fui criado; Máximo — cresci; Máximo — vou desta para a outra vida. Tu sabes, além disso, que entre a rapaziada chamava-me Max, por enquanto a vida é tão curta... e inútil é alongá-la com três letras realmente inúteis.

Isto, quanto ao meu nascimento e quanto ao meu passado — um pouco semelhante às origens do Nilo. Não sabendo donde vinha, compreendes bem que eu nunca saberia onde ia. Um bastão tem sempre duas pontas; — um começo e um fim. Por muito tempo embalei-me na esperança de ter um fim e assemelhar-me, ao menos por aqui a um bastão. Eu acreditaria de boa vontade na eternidade das rosas, mas sempre me repugnou acreditar na eternidade da eternidade...

Se eu não conheci os meus autores — em desforra conheci a vida — triste conhecimento, entre parênteses. Tiveste muita vez um espécimen de meu caráter fantástico e razoável. Eu era ao mesmo tempo o mais jovial rapaz, e o mais aborrecido indivíduo que se possa imaginar. Pamérgio forrado de Trenmor. Muitas vezes me levantava com projetos fantásticos que, postos em execução teriam feito arrebentar de riso a venerável estátua do Hospital. Muitas vezes entrava para casa com o semblante pálido, enrugado — e envelhecido horrivelmente. Lançava-me à cama, enchia de fumo o cachimbo, fumava-o e atirava-o pela janela com uma raiva surda — sem respeito à sua cor poética de bistre. Nesses dias eu seria capaz de devorar um policial — com as bandeirolas, mas sem as botas, entretanto.

Não repares nos arabescos do meu estilo; estes gracejos são um vestido de arlequim — o coração palpita embaixo. Hoje, ao escrever-te, sinto-me disposto a rir e rio-me. Vale isso mais, acredita-me, do que atirar poeira ao céu, como os Gracos. É meia-noite, acabo de encontrar alguns frangos éticos, fugindo de mim nas ruelas sombrias da Cité. Deu-me isso uma alegria! Por quê? Ah! sim, porque! sempre este ponto de interrogação!

Abro-te a porta da alcova dos meus sentimentos; não é a primeira vez, mas a última. Passava uma vida de tédio neste planeta, e além disso tenho um instinto viajor que me impelia sempre para as estepes infinitas do incógnito. Corro para lá, em teus braços, grande X., corro para lá, abre-os bastante!...

Estou, pois, a esta hora em marcha para a famosa viagem ao campo de que falam alguns. O abade de Saint-Pierre. Eu mesmo me forneci um passaporte inglês de Wester; não encontro, embora, alfândegas nas fronteiras da vida!... Meti audaciosamente a mão na urna do destino — e antes da minha hora — subtraí — o meu número... Eis tudo!

Agora falemos um pouco de ti — e dela, dela! dela!... Prometi-te um conselho, vou dar-to. Tu tens talento, Henrique, um grande talento: confirma-o perante a multidão, ela não achará dificuldades em acreditá-lo. Foste talhado por um Deus de Homero; em três passos atingirás ao termo, mas é preciso dar o primeiro; mãos à obra, os outros dois é apenas uma pernada.

Isto quanto ao conselho. Agora aos legados. Faço-te meu herdeiro universal. Tudo o que existe em minha oficina é teu. Sabes o que valem as telas de um artista morto? As minhas te ajudarão a viver. Vende-as!

Leva à Bagatela aquela pintura que eu fiz ligeiramente um dia em sua casa... Mostra-lhe esta carta, consola-a, ama-a, protege-a; responder-me-ás por ela.

Bagatela é a escolhida de meu coração... Um dia, em que ela estava triste e eu alegre, dei-lhe este nome de Bagatela que prevaleceu sobre o seu de — Gabriela. Peço-lhe que o conserve, é minha vontade; fui eu que lho deu! Tu e ela foram para mim o mundo. Ela era o amor — tu, eras a amizade. Por que me não bastavam estas duas felicidades? Por quê? ainda este maldito ponto de interrogação...

Assim, chego à recomendação que te queria fazer: — é grave, é um morto que ta faz, Henrique. Cumpre obedecer religiosamente. Que Bagatela seja tua irmã, Henrique; sê o seu protetor, seu amigo, seu pai — mas, nada mais. Pensai em mim algumas vezes e entretanto sede ambos fiéis à minha memória

Dixi — Adeus, Henrique, adeus, Bagatela, adeus ...

Máximo — vulgo o Velho!

“Todo como o velho Palma !...”



II

— Morto! — murmurou Auberseint com uma voz sombria. — Morto sem me ter apertado a mão!

— Morto! repetiu por sua vez a moça — meus pressentimentos não me enganaram... Meu Deus! Meu Deus!...

Pronunciando estas palavras, vacilaram-lhe os joelhos; a trepidação compulsiva de seu corpo tornou-se mesmo tão violenta que se Henrique não a tivesse retido nos braços ela rolaria pelo chão.

— Gabriela! Gabriela! — gritou Henrique com um desespero cheio de solicitude.

— Ah! Max! querido Max! — soluçou Bagatela — Max por que nos deixas assim?

— Como ela o ama! — murmurou Henrique — Feliz morto!

— Ah! Henrique — tornou Bagatela — não sabeis o que perco eu na morte dele! aquele nobre espírito, com o nobre coração... Eu lhe devia tanto, que nem todos os amores, e adorações bastariam para pagar-lhe!... Não o sabíeis, Henrique, pois que a sua delicadeza com semelhante confissão teria sofrido. — Ele levantou-me da calçada em que eu estava na rua, uma noite de inverno, eu tiritava de frio, tinha fome, e minha mãe acabava de morrer... Nossa história, a minha e de minha mãe — não vo-la contarei... é banal como a miséria, simples como a dor!... Eu estava pois na rua — exposta ao vento e à neve, desfalecida, semimorta e quase louca!... Máximo passou. Quando ele viu as lágrimas que corriam pelas minhas faces azuladas pelo frio, quando ele viu a minha miséria e o meu desespero, levou-me para a sua casa de artista, deu-me a chave dela, e pelo espaço de três meses, foi para comigo respeitoso, benfeitor e dedicado. Procurou-me trabalho... Enfim, uma manhã bateu à minha porta — “Minha menina — me disse ele com tristeza — é preciso que nos separemos... Tenho uma má reputação, ao que parece, e é mister que a vossa não sofra. Não deveis desmerecer aos olhos das pessoas de bem... Aluguei para vós, em vosso nome, na rua do Oeste, uma pequena habitação — donde se descortinam os jardins de Luxemburgo e onde eu vos pedirei como um favor — a permissão de ir algumas vezes, como amigo...”

— “Oh! sempre, senhor Máximo! sempre quando quiser... Eu não sou senão o que me fizeste: uma costureira modesta e feliz por viver do produto de seu trabalho... Esta ventura.., eu vo-la devo... Deus vos abençoe por isso!”

— Eis aqui o que eu respondi a Max com as lágrimas nos olhos, ajuntou Bagatela.

— Bem sabeis, Henrique, como foi nobre e desinteressada a conduta do nosso amigo... Eu o amava — nunca lho disse... mas dir-lho-ia um dia se ele esperasse um pouco... Acreditou talvez na minha frieza, na minha indiferença, e contudo Deus sabe com que gratidão eu aceitaria a oferta de seu coração e de seu nome!

Bagatela calou-se. Era grande a sua emoção na evocação destas recordações.

Com efeito, ela amara tão ingenuamente Max! como Gretchen ela fizera tanto por ele — que ele já nada lhe tinha a fazer... Porém Max tinha cousas singulares no cérebro... amava profundamente Bagatela... cercara-a sempre de cuidados delicados de atenções ternas, mas sempre de mistura com uma espécie de respeito. Ela era para ele mais que uma irmã e menos que uma amante. Quando trabalhava, entre ela e Henrique, ele lhe lançava de vez em quando um olhar paternal e amoroso ao mesmo tempo, e murmurava depois: “Há de ser minha mulher!”

— Oh! Max! Max! murmurou de novo Bagatela.

— Ah! feliz morto! — murmurou de novo Henrique.

Na tarde desse dia, o jornal — O Mensageiro — publicou estas linhas: — “Acabamos de saber da desaparição de Mr. Máximo — vulgo o Velho — Mr. Máximo tinha há algum tempo acessos de febre ardente e tudo faz crer que em um desses momentos pôs fim aos seus dias... É uma perda imensa para a arte de que Mr. Máximo era um digno representante... Cumpre registrar a sua morte no martirológio dos grandes pintores — que o desespero, uma paixão continuada ou qualquer outra cousa levaram ao suicídio... Depois de David, morto longe da Pátria, depois de Gros — agonizando no Sena, depois de Leopoldo Roberto, que se degolou em Veneza — depois de Gericault Sigalon, citamos o fim doloroso de Mr. Máximo!

É assim que se escreve a História!”

Alguns meses se passaram e — é mister confessá-lo para vergonha eterna deste pedaço de caoutchouc (borracha) que se chama coração humano — e cada dia levava consigo uma porção do amor e da amizade que Henrique e Bagatela votavam a esse pobre Max, morte sem dúvida, para os fazer felizes.

Toda a dor desaparece com o tempo por mais profunda que seja... cedo os pesares deixam de manchar o estofo cambiante da existência... Nem custa a desembaraçar a alma das recordações, que ligam ainda os vivos aos mortos... Assim, vai o mundo! Ontem, dor que parecia ser eterna, — sim, eterna como a aurora; hoje, esquecimento total das criaturas extintas, e cuja presença, além disso, seria importuna! E, realmente, os mortos são bem maçantes personagens em exigir uma memória sua sobre a terra. Para quê?

Todavia, não nos devemos apressar em deitar a primeira pedra da exprobração a essas duas pobres crianças. Max não estava totalmente morto na memória e no coração de Bagatela e de Henrique. Este último, sobretudo, quase às portas da miséria, apesar da herança que lhe deixara seu amigo, parecia acabrunhado por um remorso secreto de resto, bem fraco pela idéia de que Bagatela não partilhava seu criminoso amor. Primeiro que tudo, por uma dessas delicadezas do coração, que os amantes hão de compreender — tinha perdido o hábito de pronunciar esse nome de Bagatela sob o qual Max amara a mulher que ele amava também, posto que sem esperança. Em segundo lugar perdera ele também o hábito de se dirigir para o lado da casa de Bagatela.

Esta, por seu turno, não ousara queixar-se deste apartamento, mas lastimava-o porque o viu sofrer, e as mulheres que têm uma missão sobre a terra de mansidão, de comiseração, de afetuosidade, nunca faltam a ela. Bagatela sabia que Henrique era pobre e orgulhoso, e atribuía à sua miséria, que ele quisera suavizar, a dureza e grosseria que mostrava. Somente de vez em quando afligia-se a pobre moça com seu silêncio tenebroso, quando o interrogava delicada e amigavelmente sobre as causas dessa dor que o minava surdamente... Henrique não podia confessar-lhe que era o seu amor por ela a causa única de seus tormentos e de seus combates de cada dia. Não ousava confessar-lho receando chamar sobre si sua cólera e desprezo... Belas, completas, e ingênuas eram aquelas naturezas! Como Henrique se assemelhava a esses D. Juans que inundam os salões e os bastidores, e que imaginam como Hans Svederlick, que não há honra nem favor que não possam colher, querendo para eles, “toda a galante flor!” Pobre namorado! pobre poeta! pobre artista!

Compreendendo, enfim, que aquele amor o mataria, Henrique resolveu um dia matar-se e acabar com um golpe suas irresoluções e sofrimentos. Mas, ele não queria morrer na rua para ser transportado e exposto figura hedionda — sobre as hediondas tábuas da Morgue! Não!... a morte na sua pequena mansarda, ao pé de seus quadros, de suas obras: — na sua mansarda ainda perfumada com a presença de Bagatela: na sua mansarda, onde ele vivia com a imagem adorada, onde ela chorara; e onde lhe apertara a mão ao despedir-se! Essa morte, sim, valia a pena!

Além disso, ele morria descansado sobre a sorte dessa mulher por quem ia morrer; porquanto no primeiro dia de cada mês, à noitinha, um velho, cujo semblante austero e melancólico causava respeito, apresentava-se em casa de Bagatela, dava-lhe um rolo de 150 francos, rendimento mensal que lhe deixara Max; depois retirava-se cumprimentando, mas sem proferir uma palavra.

Uma noite, pois, Henrique entrou em casa resolvido a pôr termo à existência que o acabrunhava. Acendeu a lâmpada, correu os ferrolhos da porta, que não se fechava de todo, e depois de algumas disposições testamentárias, tomou uma pistola que pusera ao entrar em uma mesa e carregou-a...

— Amo-a muito, murmurou ele penivelmente, para não persistir em minha resolução... Sede fiel à minha memória! — disse Max.., serei fiel à sua memória... vamos... Daqui a poucos minutos estarei de jornada para a eternidade!... Ele gracejava nos seus últimos momentos... Max! Tinha essa coragem... Ah! É que era amado! Por que matou-se? Eu nunca ousara conceber esta esperança que faz minha alegria e suplício... Adeus, pois, vós todos objetos queridos que vou abandonar, adeus!

Henrique inclinou orgulhosamente a cabeça. No momento em que colocava na fronte o cano da pistola, bateram na porta. Abaixou a arma e esperou. Bateram de novo, mas com uma violência inaudita. E a porta rodou sobre os gonzos...

— Henrique! que íeis fazer? — exclamou Bagatela, precipitando-se ao mancebo e arrancando-lhe a pistola.

— Bem o vedes! — respondeu ele com uma voz surda — ia morrer!

— Morrer! tu, Henrique! oh! não deves morrer... eu to proíbo!

Dois olhos e dois lábios que dizem eloqüentemente: — vivei! têm o direito de serem ouvidos. Henrique sentiu desvanecerem-se as suas veleidades de suicídio... sobretudo quando Bagatela ajuntou:

— Há muito tempo que eu adivinhei o teu amor — porque eu também te amava; sofrias, dizes tu? E eu? Eu! acreditas então que eu não houvesse mister de coragem, ou antes de crueldade, para deixar-te assim esperar-me, sofrer e chorar? Combatias contra o vão fantasma de um passado que lá vai... lutavas com um remorso que não deve mais pesar em teu coração, agora que eu venho a ti, e te absolvo! Se é um crime esse nosso amor, meu doce amigo, tomo sobre mim a responsabilidade e a vergonha... Podemos ser felizes de hora avante, Henrique, pois que eu sou rica... um parente de minha mãe deixou-me uma herança... É uma bênção do céu! não teremos mais necessidade dos benefícios póstumos de Máximo.

Mr. Heine tem razão: “Todos sabem o que são cacetadas; mas o que é amor, todos ainda ignoram!”

— Gabriela! — respondeu Henrique com um desespero misturado de tristeza. — Fugi, deixai-me só... Há entre nós uma barreira que não podemos transpor... a lembrança de Máximo?

— Mas tu não me amas, Henrique?

— Não te amo! Mas não é por ti que eu quero morrer? Deixa-me... não quero ser perjuro!... vai-te!

— Ficarei aqui! — disse Bagatela com uma voz resoluta. — Há oito dias que te espero... oito séculos! pois que eu os contei... Tu não me procuraste... procurei-te eu... Venho dizer-te: separados, éramos infelizes; reunidos...

— Oh! não acabes, Gabriela.

— Então morramos ambos morramos...

— Ainda não, meus filhos — disse uma voz.

Bagatela e Henrique voltaram-se e viram, a primeira com medo, o segundo com espanto, aproximar-se um velho, cujo casacão pardo e cabelos brancos tinham um ar respeitável.

— O desconhecido! — murmurou a moça.

— Senhora, eu vos saúdo — disse o velho com uma voz trêmula e um pouco desfalecida. — Bom dia, Senhor! estão ambos espantados... que tínheis! Queríeis morrer, meu jovem amigo? Ah! fora com isso! é bom para os maníacos, e vós tendes juízo.

— Ah! esta voz! esta voz!... — exclamaram Bagatela e Henrique.

— É a de um homem que vos ama e quer a vossa felicidade, meus filhos... — retrucou o velho; — eu soube apreciar-vos ambos, há bastante tempo, posto que pouco me conheceis. Mr. Máximo, de quem fui amigo outrora, deixou-me o cuidado de velar sobre vós... Obedeci-lhe religiosamente... Vós que sois tão dignos um do outro, — (aqui a voz do velho fez-se um pouco irônica, o que não notaram os nossos amantes; tão ocupados estavam em recordar-se onde tinham ouvido essa voz tão fresca e suave ainda, apesar de seu abalo tremor de ancião)! Vós que sois tão dignos um do outro... ide tocar a meta da ventura! eis aqui o vosso dote... não é considerável... porém Max ficará satisfeito — lá em cima, se o aceitardes.... É a última recordação que ele vos dá... Minha missão está terminada... O que vos peço ainda, em nome de Max, é de vos lembrardes algumas vezes, de vez em quando, quando não tiverdes outra coisa a fazer... nas vossas horas de tédio, ou de prazer, que um homem existiu, que vos criou, e levou consigo a consolação de ter ao menos as vossas saudades... é bem pouco uma recordação... e bem pouco uma lágrima... Fazei algumas vezes essa melancólica esmola dos vivos a um morto, que só tem aqui na terra uma preocupação: — a vossa ventura. Adeus, só me vereis ainda uma vez, no dia do vosso casamento; até mais ver, meus filhos e... até mais ver!....

E sem esperar uma resposta de Bagatela ou de Henrique, o velho desapareceu.

— Henrique, murmurou Bagatela com uma doce melancolia. Henrique... bem o vedes... Nada mais se opõe à vossa ventura... Mas não vos quis legar um remorso...

Coisa estranha! — justamente em razão daquela absolvição que Max dera, de além-túmulo aos seus criminosos pensamentos, Bagatela e Henrique sentiam a consciência agitar-se, e apenas o artista morto levantava os seus escrúpulos eles renasciam mais vivos em suas almas...

— Oh! Max valia mais do que eu! — respondeu Henrique, voltando a cabeça, para ocultar à Bagatela a vista de uma lágrima que lhe resvalara furtivamente na face.



III

Um mês se tinha passado e em uma capela da Igreja de S. Sulpício, um padre abençoava dois jovens que tomavam diante de Deus o cargo de se amarem até a morte.

A um canto da capela estava um velho imóvel, com o pescoço estendido, que seguia com o olhar febril e quebrado cada movimento dos novos esposos que eram Bagatela e Henrique... apenas a moça pronunciou corando de ventura o sim fatal, o velho estremeceu e a sua fisionomia exprimiu uma angústia dolorosa...

Terminada a cerimônia dispersou-se a multidão. Bagatela estava radiante com o vestido azul do céu que parecia abençoar esta união e sorrir a esta festa. Henrique tinha por momentos, um ar pensativo e triste e quando subiu para o carro, procurou e fez procurar por toda parte o velho; mas ele tinha desaparecido.

Enquanto os noivos se iam de seu lado contentes e brilhantes, ele apressava o passo com um ar sombrio, para chegar mais depressa.

Subiu uma escada de uma casa da rua dos Mártires, abriu uma porta e achou-se em uma oficina povoada de quadros, de estátuas, e objetos de arte. Parou então, pôs a mão sobre o coração e contou as pancadas. — Tudo está acabado! murmurou ele com uma voz quebrada. — Ela e ele são felizes... Está bem...

E ficou entregue a uma meditação profunda que tinha por fim incessante uma determinação terrível.

— Nada de saudades estéreis! Nada de desejos quiméricos! — disse ele contemplando com olhar quebrado e resignado as nuvens que purpureavam o horizonte — lá vai o tempo das saudades e desejos... agora é a agonia... é a morte... a morte! Oh! ela já está em mim... em mim todo!

E pôs a mão sobre a fronte!

— A inteligência, esse archote soberbo que irradia isoladamente ao lado do próprio sol?... Está apagada em mim...

Pôs a mão no coração:

— O coração, esse diamante precioso que nada altera... Meu coração! quebrou-se em mil pedaços, como vidro...

Sorriu amargamente e continuou:

— Ah! os cantos de meu coração, e as marcas da minha vida são como cipós da Via Apiena: não há mais que cinzas e aqui jaz! Sobre os destroços dos meus amores e de minhas esperanças, só tinha de dormitar agora... Ah! a vida é feita de abrolhos e espinhos... Pobres ovelhas que o invisível pastor leva ao matadouro da morte, deixam lã a cada espinheiro, sangue a cada fonte de pedra... Pus o dedo sobre a ventura e a ventura fugiu-me para não voltar mais...

As divinas promessas do amor esvaneceram-se ao sopro gelado da indiferença... como eu era insensato! crer na coragem de Henrique e na virtude de Bagatela! Oh! queridos ídolos derrocados! Mas para que inventar Galatéas impossíveis? por que quis eu apoiar a ventura de toda a minha vida na areia movediça das paixões? — Quis, fatal pensamento! — submeter o amor de um e a amizade de outro à pedra de toque da ausência, e essa experiência provou-me o egoísmo dessas duas afeições sem as quais eu não podia viver... No fundo da ânfora onde as lancei ambas, resta um pouco de ouro puro e muita terra...

Não me amam mais, não me podem mais amar... E é tal o desencanto horrível de minha alma que nesta hora solene chega a duvidar que eles me amassem!... Mas que importa? Eu os amava, eu os amo ainda, ingratas crianças que me esqueceram tão depressa!... E a sua virtude me é cara, apesar de haver quebrado a minha... Ah! a ventura! a ventura! — repetiu ele com violento furor — a ventura! ... por ventura nós a conhecemos — nós os eleitos, os predestinados, os gloriosos, cuja vida é um calvário de estações dolorosas... A ventura nunca vem cedo; chega mesmo tarde demais. É um viajante descuidado e fantástico, que não sabe onde vai, onde deve comer, onde deve dormir, e que uma noite vem por fantasia bater à nossa porta. Mas já a velhice cá estava: a cabeça está calva, os olhos sombrios, a boca fechada; nós nos habituamos à imobilidade da sepultura, pela imobilidade da idéia. Todavia abre-se a porta a esse viajante estouvado e falador que para vir à nossa casa solitária toma um caminho mais longe... que retardou-se na viagem a cercar com as mãos as cinturas das jovens aldeãs encontradas, e a contar-lhes loucas histórias que as fizeram corar — de prazer! Abrimos a porta mas, rosnando; por que temos reumatismos: abrimos rosnando e tossindo, escandalizados das risadas intempestivas e da alegria extravagante desse hóspede, cuja vinda, que nos importuna tantas vezes, há bom tempo saudamos com efusão e gratidão... Não lhe compreendemos o falar... Já nos é um estrangeiro; mais que um estrangeiro mesmo, um inimigo; por que sua presença agora em nossa casa é uma ironia amarga, é um insulto. Mas não somos maus; não sabemos sê-lo; a dor habitua à bondade; e em vez de dizer a esse estranho que nos perturba o sono de ancião, batendo precipitadamente na porta fechada de nosso coração: “Já não vem a tempo!” — dizemos-lhe melancolicamente: — “É bastante tarde!”

— Ah! coisa terrível.., coisa terrível... a ventura!

Durante um instante ficou ele com a cabeça entre as mãos crispadas; depois continuou com os olhos mais úmidos de lágrimas, porém mais enternecidos:

— Ouço soar em meu coração sinfonias inebriantes da mocidade, como um alegre concerto de vozes amadas... Ouço minhas alegres e frescas recordações de mancebo bater carga e rolar louca e impetuosamente por meu pobre cérebro... Ah! toque insensato, amante risonho dessas recordações, dessas sinfonias me fazem mal!... Quero dormir o meu último sono, embalado pelo pensamento de que meu fantasma doce e triste atravessará talvez a vida de Henrique e Bagatela, e deixará um vestígio perfumado em seus corações... Ah! ainda vem ver, por que tentei essa prova maldita?... Antes de morrer experimentei a morte... Magoadora experiência! não sei se devo alegrar-me com ela, pois eles são felizes, ou entristecer-me uma vez que morro! Oh! meus ídolos! ídolos amados, caístes do pedestal em que vos elevei!... Eu devera morrer logo... teria lançado a campo, crença, fé, ilusão!... não assistira à tua fraqueza Henrique! não assistira à tua queda, Gabriela!...

Depois, desembaraçando-se do vestuário do velho que o incomodava, Max dirigiu-se pálido, grave, com a fronte carregada de idéias sinistras, para o fundo da sua oficina e para diante de uma tela branca que parecia esperar dele o movimento e a vida...

O rosto viril do artista refletiu, nesse instante, as torturas sem nome, as angústias horríveis, as dores inauditas que lhe rasgavam a alma desde o dia em que voluntariamente deixara Henrique e Bagatela... Estava acostumado ao uso das decepções como Mitrídates ao uso dos venenos; mas desta vez a dose era forte demais: matava-o!...

Nesse instante, ele odiava a vida com todas as forças que lhe restavam... desenganado deste mundo, chegava quase aos lábios a taça fatal quando o vento lhe trouxe o eco fraco de um canto lançado no espaço: Pôs-se a escutar. A voz dizia:

Debalde semeei formosas crenças.
Nem um raio de sol desceu-me aos prados!
Veio a dor às campinas da esperança
Como vai joio ao trigo.

— É a voz de um poeta! — murmurou Max com um melancólico sorriso. — Não sou só eu a sofrer!

Chegou-se depois ao seu cavalete, tomou os pincéis e na tela colocada em frente dela construiu em uma hora, que passou como um relâmpago — o poema melancólico e pungente de sua vida despedaçada ainda no começo... Evocou por um momento os dois entes adorados que tinham vindo um após outro cravar-lhe o punhal no coração... E essa tela animou-se como por encanto! Iluminou-se de reflexos fantásticos e vertiginosos! Max dava assim o derradeiro esforço de seu gênio, o último grito de sua alma, a última vibração de seu coração...

Mas esse esforço sobrenatural devido à febre e ao desespero, esmagou-o... Ele arrastou-se até a janela para contemplar ainda uma vez o céu que lhe negava, como suprema consolação, fechar os olhos nos seios de uma mulher, e nos braços de um amigo; palpitava-lhe o peito convulsivamente...

Grossas nuvens pardas, levadas por um vento. Estas acumulavam-se no horizonte como uma massa de neve. O sol, em seu ocaso, espalhava sobre a cidade uma cor sombria em harmonia com as sombrias idéias do artista...

— Vamos! — exclamou ele voltando à mesa onde depusera ao entrar um pequeno frasco contendo um licor escuro. — Que o sacrifício se consuma! Agora que todas as afeições estão mortas, que as minhas ilusões estão extintas, vou extinguir-me com elas, como elas vou morrer... O aventureiro Gabor tinha razão: — “A vida é uma caçoada amarga!...”

E de um trago, o heróico artista absorveu o licor do vidro que descompôs-lhe o semblante rapidamente.

Corria-lhe o olhar sangrento e úmido de um a outro objeto, roçando de leve muitas recordações que se prendiam a duas criaturas queridas e amadas demais.

De repente, esse olhar moribundo parou na tela deslumbrante em que seu gênio lançara a última palavra... Parecia-lhe que legar aos vivos, aos indiferentes, aos felizes o admirável poema que ele esboçara seria uma profanação, um sacrilégio, uma impiedade e reunindo então as poucas forças que lhe deixava o veneno, arrastou-se penivelmente até o cavalete, tomou uma faca e em um sublime e último esforço rasgou e despedaçou freneticamente a tela... Depois seus braços se torceram, os dedos se lhe crisparam, soltou um grito surdo, um grito de angústia e de saudades supremas que o eco repetiu.

— Tudo acabara.